Metodologia, estilo e interpretação: Ensaio crítico sobre a teoria da estruturação de Anthony Giddens1
Methodology, style and interpretation: Critical essay on Anthony Giddens’ theory of structuration
Fecha de recepción: 24 de mayo de 2021 / Fecha de aprobación: 24 de junio de 2021
Alexandre Quaresma2
Resumo
O objetivo desse ensaio crítico de interpretação sociológica é refletir sobre a teoria da estruturação proposta por Anthony Giddens em seu livro A constituição da sociedade, no sentido objetivo de discutir suas ideias mais gerais, suas propostas e também conclusões, refletindo acerca da pertinência ou não de suas argumentações teóricas, e, no extremo, tentar verificar se é correta e válida a sua própria proposição teórica da estruturação. Subjacente a esse contexto, está analogamente a nosso intensão de tentar poder contribuir, se não com o pensamento sociológico e a própria teoria da estruturação de Giddens, mas pelo menos com a análise crítica dessa mesma teoria, sempre num sentido objetivamente construtivo e crítico, do próprio edifício do conhecimento sociológico a se construir a si mesmo dinâmica, contínua, e ininterruptamente –para usar os termos de Giddens– através do tempo e do espaço. Objetivamente, focaremos nossa atenção no método, no estilo e na interpretação que Giddens emprega na concepção de sua teoria da estruturação, e, ao final, proporemos algumas poucas reflexões, que dizem respeito às deficientes ou nulas ligações externas da referida teoria com a biologia e a bioevolução, especialmente com relação à estruturação da mente autoconsciente como necessidade social do homo sapiens.
Palavras-chave: Sociologia, teoria social, Anthony Giddens, teoria da estruturação, crítica à teoria da estruturação
Abstract
The objective of this critical essay on sociological interpretation is to reflect on the theory of structuring proposed by Anthony Giddens in his book The Constitution of Society, in the objective sense of discussing his more general ideas, proposals and conclusions, reflecting on the relevance or not of their theoretical arguments, and, in the extreme, trying to verify if their own theoretical proposition of structuring is correct and valid. Underlying this context, is similarly to our intention to try to be able to contribute, if not to sociological thought and Giddens’ own theory of structuration, but at least to the critical analysis of that same theory, always in an objectively constructive and critical sense, of the building itself of sociological knowledge to build itself dynamically, continuously, and uninterruptedly – to use Giddens’s terms – across time and space. Objectively, we will focus our attention on the method, style and interpretation that Giddens employs in the conception of his theory of structuration, and, in the end, we will propose a few reflections, which concern the deficient or null external links of that theory with biology and bioevolution, especially regarding the structuring of the self-conscious mind as a social need of homo sapiens.
Keywords: sociology, social theory, Anthony Giddens, structuration theory, criticism of structuration theory
Notas prévias introdutórias
Todos os atores sociais, é possível dizer-se com correção, são teóricos sociais que alteram suas teorias à luz de suas experiências e são receptivos à informação que chega, a qual pode ser por eles adquirida ao fazerem isso. A teoria social não é, em absoluto, a província especial e isolada de pensadores acadêmicos.
Anthony Giddens (2009, p. 395)
Gostaríamos de partir de algumas notas prévias críticas, oriundas de impressões subjetivas pessoais, obtidas principalmente à época em que atuávamos ativamente como entusiastas das ciências sociais e da divulgação científica para a academia e também para o público leigo de uma maneira geral, e que Giddens veio também a nos confirmar3. Nesse sentido, apontamos como significativo para qualquer análise sociológica, em primeiro lugar, o fato dado da juventude do próprio campo, juntamente com sua respectiva teoria social, compreendendo-o como uma área ainda nascente das ciências humanas, com suas poucas centenas de anos apenas de existência, o que por si só já impõe uma significativa limitação temporal e genealógica, no sentido tempo de nascimento, florescimento e maturação de seu próprio conhecimento que se acumula, e isso se torna mais gritante se comparamos a sociologia com a filosofia, a matemática e as ciências naturais, por exemplo, que são disciplinas que dizem respeito à própria aurora do pensamento abstrato humano em seu berço e ainda nascituro, remontando um tempo –agora– milenarizado, e por isso mesmo muito mais rico. Mas isso não impede absolutamente que a sociologia4 se torne consistente, forte, que cresça e se desenvolva cada vez mais, já que é para isso que muitos pesquisadores e docentes dos departamentos de ciências sociais das universidades do mundo trabalham.
Em segundo lugar, apontamos também que parece haver uma escassez de teóricos e teorias sociais que sejam capazes de não apenas avançar para além dos escritos épicos dos principais pioneiros e bastiões da sociologia, com suas genialidades flagrantes –mas necessariamente também datadas e ancoradas em visões de mundo absolutamente determinadas, seja pelo pensamento dominante, seja pela cultura da própria época em que eles viveram, refletiram e escreveram–, e que dessem conta das necessidades e premências de nosso tempo, e não apenas dos de outrora. Tentar compreender as sociedades humanas apenas pela ótica materialista5, por exemplo, significa ignorar toda uma pletora de conhecimentos e saberes certamente de interesse para as ciências sociais.
Em terceiro lugar, notamos que há também uma espécie de auto estima baixa por parte de alguns integrantes da própria disciplina sociologia, que insistem em discutir com os membros das demais áreas de saberes humanos, questionando se as ciências sociais são ou não de fato ciências, e se o cientista social é ou não um cientista6, o que é –segundo o nosso ponto de vista– uma completa perda de tempo, já que o estudo do fenômeno da vida humana em sociedade é –sem dúvida alguma – um campo muito importante e profícuo do conhecimento humano universal, que certamente nos ajuda e ajudará a compreender um pouco mais sobre nós mesmos, sobre as relações que se estabelecem no próprio tecido comum da trama social com suas reciprocidades7, com especial atenção voltada também para as organizações, instituições e padrões –e no extremo das próprias dinâmicas humanas–, sendo assim um solo fértil e propício para cientistas e estudiosos sociais de hoje e de amanhã, que estejam interessados em compreender esses fenômenos, e quem sabe até tentar explicar os fatores, forças e razões, que regem as rizômicas, intrincadas e sutis interações sociais humanas, e isso também se aplica –sustentamos– às manifestações sociais que ocorreram no tempo em que nos tornamos Sapiens. Lembrando que muito do potencial desse importante campo ainda está por vir a ser, ou seja, está a se concretizar, a se pensar, a se produzir, a se conceber, já que, com o passar dos séculos –independentemente de um ou outro pensador especificamente–, a tendência é que os próprios conhecimentos e saberes sociais cresçam, amadureçam, decantem, consolidem-se e se multipliquem em benéficos frutos –também sociais–, retroagindo assim sobre a própria sociedade, lembrando que isso é –teoricamente– um pressuposto da própria atividade sociológica8.
Um outro apontamento ainda à guisa de introdução, diz respeito às intermináveis lutas teóricas internas, dicotomias e oposições –em tese inerentes à própria constituição da sociologia9–, nas quais se perde enorme quantidade de tempo, energia, atenção, e tudo isso apenas objetivando o combate e refutação das hipóteses dos opositores, em especial aquelas mais conhecidas, cultuadas e idolatradas ao longo da história, ainda assim corroídas pelo vento áspero de novos tempos e novas sensibilidades sociais. Nesse sentido, é comum apreciarmos com certa melancolia e fastio desmotivante, pesquisadores, pensadores e cientistas sociais, muitos deles renomados e de fato importantes, juntamente com seus séquitos de seguidores, comentadores e congêneres, apenas se debatendo entre si com as mesmas repisadas e anciãs ideias, justapondo seus exércitos teóricos em bloco e em formação militar de ataque, diante de seus pretensos inimigos e opositores coetâneos –que na verdade não passam de pares acadêmicos–, e assim, como numa guerra atroz, travam-se embates acalorados, luta-se até quase a morte, sendo que a única finalidade parece ser a destruição das ideias do outro lado –de seus interlocutores–, bem como a desqualificação e aniquilação dos modelos e conceitos destes mesmos opositores, quase sempre por meio de análises e resenhas retrógradas, repetitivas, pregativas e até mesmo exegéticas, e em muitos sentidos beirando o próprio fanatismo, fato que pouco ou nada contribui –acreditamos– para o enrobustecimento de uma possível teoria social nova e ampla, dinâmica e abrangente, que possa ser capaz de ajudar a interpretar e explicar as diferentes formas e forças que moldam a socialização humana10. Cônscio disso –como veremos no decorrer desse ensaio–, Giddens procura ignorar esse tipo de comportamento beligerante, construindo com eclética pluralidade transdisciplinar a sua teoria da estruturaçã11, reconciliando métodos qualitativos e quantitativos, subjetivos e objetivos, dos atores e das redes, levando em conta a variável da produção material, da estatística, da geográfica, a institucional, mas também colocando ênfase na importância das intencionalidades subjetivas e nos próprios movimentos sociais, como forma de mudar a realidade e o próprio mundo.
Um último aspecto que consideramos importante, que aqui queremos apontar também como crítico, antes de objetivamente enfrentar os pensamentos de Giddens, diz respeito ao recursivo e de fato extenuante repúdio discursivo que é sistematicamente feito e refeito em relação ao atual modelo econômico vigente na maioria das sociedades desenvolvidas, e isso requer –acreditamos– uma atenção reflexiva especial de nossa parte. É fato que muitos teóricos insistem, em tom de lamúria quase dogmática, numa espécie de lavagem cerebral às avessas, essa enjoativa crítica ao modelo econômico vigente que se repete ad nauseam, culpando-o por tudo de pior que acontece nas sociedades humanas, como se na prática extingui-lo, modifica-lo ou mesmo substituí-lo por um outro modelo melhor e mais virtuoso –socialmente falando– fosse apenas uma questão de vontade pessoal individual, ou mesmo de ideologia organizada em manifesto épico, e como se ele mesmo também –o referido sistema– não fosse um fruto dessa mesma coletividade social em progressiva interação e socialização através dos tempos imemoriais, perfazendo os próprios sistemas sociais contemporâneos desde o seu interior12. Nesse sentido –ou contra esse tipo de postura petrificante–, faz-se necessário compreender pragmaticamente que é aqui neste mundo e com esse sistema econômico que vivemos hoje, agora, nesse ano, e nesse século, e não em um outro mundo imaginário e de sonho, abstrato ou mesmo idealizado, que pudesse estar alheio ao tempo e à realidade mundanos que a todos nós engloba. E é necessário compreende também que o registro ou variável econômica pode e deve ser visto como importante, e certamente deve ser levado em consideração, mas apenas como mais uma dentre muitas outras características variáveis relevantes e até mesmo úteis ao estudo social das coletividades humanas. E mais: compreender que todos os fechamentos teóricos em ismos13, por si mesmos e levados ao extremo, apenas aprisionam o pensamento em fórmulas e modelos teóricos únicos, e também acabam por confundir e distorcer justamente aquilo que o pensamento humano pretende estudar e compreender, ou seja, a realidade factual e social propriamente dita, enfatizando em demasia aspectos materiais e econômicos, à custa da negligência total ou parcial de outros tantos elementos fundamentais que também seriam potencial e teoricamente importantes ao sociólogo, transfigurando assim o próprio objeto de estudo sociológico, e pior, reduzindo-o à meras relações materiais determinísticas, levando assim o pesquisador-observador a incorrer em erro, ou inadvertidamente ignorar todo o resto14.
Feitas estas notas prévias e críticas –que em muitos sentidos justificam a nossa própria opção em termos de terminologias, narrativas e argumentações–, avançaremos para o livro A constituição da sociedade, publicado pela primeira vez em 1984, em que o sociólogo inglês Anthony Giddens apresenta a sua teoria da estruturação, que é uma tentativa clara de Giddens de construir uma teoria social capaz para o enfrentamento desses novos e desafiadores tempos que se apresentam diante de nós nessa virada de milênio, aproveitando tudo de bom que seus predecessores sociólogos podem oferecer com suas respectivas teorias, mas também aportando uma ampla gama de autores e teorias transversais contemporâneas, buscando ofertar à própria sociedade e à sociologia de uma maneira geral, um ferramental teórico eficiente que possa contribuir para a interpretação desse fenômeno social múltiplo e extraordinário, que se expressa através da socialização humana, em suas mil e uma facetas15. Assim sendo, o nosso objetivo nesse ensaio é –ipso facto – tentar trazer à luz as qualidades da elegante prosa teórica social e também ensaística de Giddens, bem como analisar as fundamentações da sua teoria da estruturação, refletir sobre suas conclusões, mas também chamar atenção para aspectos de suas argumentações que consideramos frágeis, inverossímeis ou mesmo pouco prováveis, seja por razões de superficialidades pontuais, seja por mero descuido interpretativo, ou seja por um excesso de confiança em suas próprias ideias e teorias, que – reconhecidamente – possuem qualidade intrínseca e contribuem para o edifício sociológico e seus saberes.
Metodologia
Promover o caráter crítico da ciência social significa favorecer uma percepção conceptual desenvolvida das conotações práticas de seu próprio discurso.
Anthony Giddens (2009, p. 416)
A metodologia16 inclusiva adotada por Giddens de associação de múltiplas correntes de pensamento, teorias diversas e diferenciadas é clara, e ela tenta demonstrar que é não apenas possível, como também útil e desejável, adotar um tom plural e abrangente na hora de elaborar a arquitetura das ideias e pensamentos das ciências sociais. E esse método permite uma transversalidade pluridisciplinar interessantíssima, pois assegura que autores e teorias não apenas de hoje, mas também de outrora e de correntes antagônicas, possam finalmente dialogar, ainda que estejam pretensamente em lados teóricos opostos, em termos de racionalidade lógico-científica. Reconhecer os pontos fortes de tal ou qual cientista social, de uma ou outra corrente de pensamento, passando ao largo dos pontos fracos, apenas com uma pequena referência crítica –como acreditamos ser apropriado–, não parece ser um problema para Giddens em relação à exposição de suas ideias. Nesse sentido, A constituição da sociedade parte de alguns pressupostos importantes, que precisam aqui ser mencionados um a um, até para podermos compreender suas ideias, e o conceito de agente intencional é certamente um deles. Para Giddens, o agente social, em meio à intrincada trama societal das interações de copresença, não deixa de possuir a sua conotação estrutural de ser biológico individual, e esse mesmo ser humano biológico, também se encontra necessariamente situado no mundo ontofenomênico da realidade, o que implica também a relação do tempo e do espaço, e, nesse contexto, todo agente é –segundo Giddens– necessariamente intencional, ainda que a estrutura imponha diversas influenciais a ele. Além disso, existe também o conceito de reflexividade, que seria uma espécie monitoração constante das próprias ações e também das dos demais agentes sociais, envolvidos nas múltiplas interações de copresença. E, segundo o autor, nessas interações, todo ator social age sempre de acordo com suas próprias razões e intensões subjetivas, de acordo com suas inclinações pessoais, mas também de acordo com aquilo que a sociedade e mais especificamente as situações sociais exigem dele, e esse fenômeno acontece sempre e recursivamente ao longo tempo e do espaço, numa espécie de reciprocidade mútua, que garante e calibra a satisfação das expectativas de todos os envolvidos nestas mesmas interações, e é nessa esfera de acontecimentos que se plasma –ainda segundo Giddens– a própria vida social, e é aí que ele fundamenta toda a sua teoria da estruturação17. Como o próprio autor enfatiza, e nós também já mencionamos, a dimensão de tempo e espaço é fundamental para compreendermos a sua teoria da estruturação, pois é através dela que podemos perceber como os sistemas sociais operam e adquirem seus significados seminais, produzindo-se e reproduzindo-se ao longo da história. Tomando como exemplos os direitos e as leis, é possível afirmar que estes sistemas jurídicos são construções sociais coletivas, sistemas sociais que se constituíram através dos tempos e da história18, e que produzem e reproduzem suas próprias práticas, toda vez que um direito é violado ou defendido, e toda vez que a justiça é evocada ou feita. A justiça, nesse sentido, é uma instituição absolutamente social19. E ela é também –enquanto dinâmica– um excelente exemplo de ações que ocorrem em contextos que o ator não pode controlar em completa nem absolutamente, e que se originaram e surgiram muito antes da existência dele mesmo20. Ainda nesse contexto, Giddens nos fala conceitualmente de um tipo de integração social que extrapola o espaço e o tempo presente das ações sociais dos agentes nas atividades de copresença, no sentido de que esses atores não criaram a estrutura, e nem muito menos determinaram suas regularidades, mas a reificam e reproduzem, na medida em que estão também inseridos no próprio sistema social. Objetivamente, poderíamos tomar o próprio modelo econômico vigente como um outro exemplo do tipo de influência que pessoas, conjunturas e tempos passados, podem ter em relação aos agentes sociais e suas ações cotidiárias do presente. E uma vez que estes agentes nasçam sob o signo do sistema, e isso é uma regra para todo o mundo desenvolvido, eles terão de encontrar um meio de vida, ou seja, uma forma de produção também econômica, que lhe permita sobreviver no interior desse tipo de estrutura social, calcada sistemicamente em tal tipo de economia material e mercantil. Num âmbito mais abrangente, a própria cultura talvez seja o exemplo mais claro desse tipo de integração social sistêmica dos modos e hábitos reciprocamente aceitos como apropriados nas mais diversas atividades de copresença humanas, já que os agentes têm internalizadas tais normas condutas a serem praticadas, e o mais importante de tudo, eles agem de acordo com elas –para usar a termos de Giddens– no tempo e no espaço, e assim acontece a própria estruturação. Enfim, os atores agem em ambientes de copresença, mas mantêm laços e relações estruturais com as coletividades –de ontem e de hoje –, no que Giddens chama de tempo-espaço estendido21. O tempo estendido é –então– aquele tempo que diz respeito a coisas, significados, acontecimentos, instituições e pessoas que não se encontram presentes em tal ou qual situações de copresença, o sistema social está repleto desse tipo de influência não presencial que extrapola o tempo e o espaço do presente.
Retomando a nossa discussão, é possível afirmar que, qualidades notáveis de Anthony Giddens em A constituição da sociedade é a regra, e não a exceção, e se fossemos enumerá-las uma à uma, diríamos que –em primeiro lugar– destaca-se a sabedoria de não desprezar nunca o conhecimento de senso comum, chamado também de conhecimento tácito ou prático, ou seja, é preciso reconhecer que Giddens destaca repetidamente a capacidade que todos os agentes competentes possuem de saber e praticar uma série de posturas, ações e interações, e de seguir uma série de padrões comportamentais de copresença, habilidades que ele chama pertinentemente de consciência prática22. Um exemplo simples ajuda muito: se um agente social se vê diante de um perigo eminente de acidente, juntamente com outros agentes num lugar comum e público, e há entre eles crianças, mulheres e idosos, essa consciência prática dos atores sociais presentes entra imediatamente em ação, priorizando-os em termos de proteção, antes mesmo que se elabore racionalizações abstratas e éticas acerca do melhor a ser feito naquela situação especifica onde há vulneráveis, e é a consciência prática –então– que toma o controle das ações e interações. Não há nenhum código de conduta social específico escrito ou regulamentado expresso para uma situação como essa, mas a prática social repetida ao longo do tempo cristaliza e plasma uma capacidade que Giddens chama de consciência prática, que, segundo nosso rude entendimento, não difere muito do chamado conhecimento de senso comum23. Não podemos deixar de apreciar também o pragmatismo realista de Giddens, principalmente quando reconhece e faz questão de frisar, o caráter inexoravelmente singular da própria disciplina que estamos a estudar, que implica uma abordagem qualitativa, ainda que a abordagem quantitativa também tenha seus usos e aplicações24. O que absolutamente não quer dizer que devamos desprezar toda a pletora de pensadores e cientistas sociais brilhantes que vieram antes dos atuais e trabalhavam com estatísticas, mas que é desejável que saibamos apreciar não apenas suas qualidades, como compreender também suas limitações temporais e culturais, aproveitando deles o que não foi corroído pelo julgo inexorável do tempo e das novas sensibilidades sociais, utilizando aquilo que ainda encontrem eco na realidade mundana dos sistemas sociais atuais. Uma última observação acerca da metodologia, diz respeito ao tom leve que Giddens adota em sua prosa sociológica, o que confere a ela uma fluidez teórica que pouco ou nada tem de hermético ou rebuscado, pelo contrário, em A constituição da sociedade tudo é apresentado de maneira leve e sem enroscos ou armadilhas teórico-discursivas insolúveis, e nesse sentido é possível dizer que a obra é escrita em um tom conciliador, no sentido de pluridisciplinaridade transversalizantes, algo que –sem dúvida– não podemos nem pudemos –ao ler– deixar de apreciar.
Estilo
As “descobertas” das ciências sociais não são necessariamente novas para aqueles aos quais elas dizem respeito.
Anthony Giddens (1997, p. 395)
O estilo transversal, pluridisciplinar e abrangente que Giddens imprime em A constituição da sociedade, é notável. Objetivando a explicação e o esclarecimento pleno de suas próprias ideias, fala-nos sobre uma sociologia muito menos combativa e em guerra consigo mesma, necessariamente mais inclusiva, com menos ênfase nos grandes medalhões das ciências sociais, como Marx, Weber, Durkheim –ainda que, sem preterir deles–, mas, por outro lado, com relativa convergência com outros tantos como Goffman, Parsons, Darwin, Hägerstrand e tantos outros, mas mantendo sempre uma forte relação pessoal com a busca de uma teoria social nova e abrangente, menos sujeita à escravidão de ideias petrificadas pelo tempo, ou à doutrinas de um só pensador, mas seguindo num caminho de inclusão de convergentes, no sentido de uma concepção menos determinada de antemão por quaisquer razões ou motivos imutáveis implícitos em modelos, os quais com muita facilidade podem se travestir em dogmas, tornando-se meros artigos de fé, ou seja doxa, e é justamente daí que nascem os ismos que tantos criticamos, e é daí também que se originam as lutas e embates mais ferrenhos, baseados quase sempre em dicotomias e dualidades, que nunca admitem nada de útil no pensamento ou método do outro lado, o que é uma bobagem, já que deveria haver apenas um lado, que seria justamente o da construção comum do conhecimento. Não que o autor não se refira aos patronos da sociologia –pelo contrário–, mas o faz sempre com parcimônia e diligência, buscando o que pode haver de melhor, de mais interessante à estruturação das ideias, evitando fazer o inverso, ou seja, passando com elegância ao largo, e deixando apenas um pequeno registro de que não está ignorando os fatos inverossímeis ou inapropriados em relação à atualidade.
Acerca de Goffman e suas conclusões, expressas nas intrincadas representações do eu na vida cotidiana, Giddens se mostra bastante amistoso e convergente, aproveitando grande parte das mais significantes contribuições do Goffman, tomando-as inclusive como uma espécie de alicerces conceituais para a sua análise da estruturação das relações, já que esse último se ocupa principalmente das atividades que Giddens denomina como copresença, e é justamente nessas atividades que se produz e reproduz a própria estrutura, daí a ideia recursiva de estruturação, como algo que se dá inexoravelmente nos encontros interativos dos corpos nas relações de reciprocidade que perfazem toda a nossa vida cotidiana, de maneira que Goffman é tomado como um autor, cujo pensamento e estilo sociológico pode ser trazido para o presente e aplicado nas mais diversas atividades sociais de nossos dias. Giddens chega a defender explicitamente Goffman dos ataques e críticas que imputam a ele, no sentido de seus escritos se aplicarem apenas às questões microssociológicas25 e não às macrossociológicas, o que consideramos uma ingenuidade recalcitrante, principalmente diante da importância do trabalho de Erving Goffman26, principalmente em A representação do eu na vida cotidiana27. E Giddens tem consciência dessa importância, e usa essa mesma microssociologia tão criticada em Goffman por possuir demasiada ênfase nas relações dos sujeitos, harmonizando-a com outras correntes sociológicas até mesmo microsociológicas, como é o caso de Hägerstrand, por exemplo, pois –segundo Giddens– é preciso resistir a esse tipo de dicotomia entre abordagens estritamente focadas apenas na subjetividade dos atores ou apenas na objetividade do sistema28. Ademais, o que Goffman demonstra com muita clareza em seu interessantíssimo livro A representação do eu na vida cotidiana, é que existe uma série de modos de comportamentos já acordados e internalizados em nossos costumes cotidianos, que sequer percebemos com clareza que os seguimos à risca, e que nós também esperamos que os demais atores sociais em torno de nós ajam de forma recíproca29, de acordo com esse contrato social, ainda que este seja em muitos sentidos um contrato abstrato, não estando escrito ou expresso verbalmente em palavras em nenhum lugar30. Apenas a título de breves exemplos, não olhar diretamente nos olhos de alguém na rua, ou inversamente olhá-los fixamente, executar um determinado movimento gestual complexo de reverência ou de submissão, ou ao contrário assumir uma postura dominadora e pretensamente superior de autoridade, dizer algo num determinado tom de voz específico, e não em outro, expressando tal ou qual sentido e sentimento, demonstrando assim respeito, admiração ou mesmo medo, enfim, tudo isso se encontra impregnado e amalgamado de modos de comportamentos que muitas vezes são assumidos instintiva e cotidianamente, sem que haja necessidade de quaisquer abstrações teórico-reflexivas ou modelos, pois fluem e refluem corriqueiramente nas infindáveis atividades sociais de copresença, e ao nos fixar nisso sabemos que estes modos de comportamento estão de fato acontecendo –como explica muitíssimo bem Goffman–, de modo que tal entendimento vem praticamente ao encontro das necessárias fundamentações que Giddens tanto busca harmonizar em seu conjunto teorético de notável elegância e leveza, pois demonstra enorme sabedoria em trazer justamente os lados mais interessantes de autores como Goffman, por exemplo, que certamente tem o que oferecer em termos de perspectivas para a compreensão das relações sociais, e também da estruturação da própria sociedade, e é aqui que Giddens –segundo o nosso entendimento– acerta em cheio31. Ainda como mais um exemplo pontual e ilustrativo, é possível afirmar que, em ambientes de encontros sociais de copresença, como em festas e reuniões sociais das mais variadas naturezas –por exemplo–, exige-se e ao mesmo tempo espera-se que todos se comportem de uma maneira bastante específica e predeterminada, onde cada um vai interpretando e protagonizando o seu papel, e não de outra maneira diversa e inapropriada, ambiente social em que –naquele dia– o garçom será sempre o garçom, o cozinheiro será cozinheiro, os convidados serão os convidados, e os anfitriões idem, e qualquer desvio dessa espécie de roteiro –para usar também a metáfora dramatúrgica de Goffman– em muitos sentidos predeterminado, pode soar como uma espécie de desajustamento social do ator em relação ao drama social coletivo, que todos nós encenamos e protagonizamos todos os dias, invariavelmente, e ao qual todos, sem exceções, têm de se subordinar e adequar, sob pena de sofrer advertências, sansões, punições, e ser até gravemente penalizado e banido da atividade social, ou ainda –no extremo– ser privado da liberdade de ir e vir, e é para isso que existem os presídios, os sanatórios psiquiátricos, as colônias penais, e era para isso que servia o próprio ostracismo de origem grega antiga, onde o cidadão perdia tudo que o ligava à sociedade por vinte anos, tornando-se –segundo a própria lógica grega da época– um bárbaro32.
Ainda se apoiando em Goffman, Giddens nos fala também do conceito de posição social, que é algo que não se resume apenas às condições econômicas do agente, mas também às posições práticas dos atores em interação na grande opera comum e coletiva que se interpreta ao se viver em sociedade. À guisa de exemplo, se o sujeito se encontra na rua de uma grande cidade da vida, de madrugada, inafortunadamente numa situação de risco e vulnerabilidade, e por sorte vê a chegada de uma viatura policial, acreditará que estará sendo salvo do infortúnio e não o contrário, já que o papel daqueles homens a bordo do carro representando o Estado é justamente garantir a segurança e a ordem pública. O mesmo tipo de coisa acontece quando se entra num restaurante qualquer, e se pede uma comida, pois implicitamente está a ideia de que aquela comida foi bem feita, com higiene etc. e exemplos como esse na vida societal podem de fato não ter fim, pois o tecido social se constitui justamente dessa trama de reciprocidade mútuas não só presumida, como também –para usar a terminologia do próprio Giddens– produzidas e reproduzidas no tempo-espaço por organismos biológicos humanos em situação de copresença33. Trazer de volta esse saber de Goffman, aplicando-o como mais uma forma de fundamentação para a sua teoria, parece-nos uma atitude não apenas acertada, como também funcional e eficiente, e essa habilidade sui generis é uma característica não apenas metodológica, mas também estilística flagrante de Anthony Giddens. Um dos aspectos relevantes para essa crítica, que Giddens explicita com clareza por meio desse estilo teórico receptivo à diversidade de ideias e concepções, é que as estruturas de pensamento não existem independentemente dos agentes pensantes que estruturam seus argumentos por meio delas. Enfim, os agentes sempre sabem o que, como e quando fazer o quê, enfim, como sabem muito bem como devem proceder nas relações, simplesmente porque isso é necessário às suas vidas práticas e objetivas. E mesmo nas sociedades ditas mais primitivas, os agentes também têm de estar aptos a agir não aleatoriamente, mas direcionados para finalidades comuns, que giram sempre em torno desse conhecimento tácito de senso comum, e isso é praticamente uma regra nas atividades sociais de copresença não apenas dos seres humanos, mas também da maioria dos animais vertebrados. De modo que, retornando dessa pequena digressão ao que se poderia chamar de conhecimento, não são as teorias que ditam a vida cotidiana humana –sustentamos–, mas antes a própria vida cotidiana humana que determina infalivelmente o que poderá ou não ser uma boa teoria sobre a sociedade. Objetivamente, tratamos da capacidade de construir hipóteses promissoras e articular indagações esclarecedoras na investigação sociológica34, e obliterado ou cego por teorias muito rígidas, determinadas ou exclusoras, é praticamente impossível fazê-lo.
Seguindo a própria ordem que Giddens apresenta suas fundamentações, teorias e autores em A constituição da sociedade, deparamo-nos com Hägerstrand e sua concepção teórica de tempo-geografia, que é um outro aporte teórico importante na construção das fundamentações de sua teoria da estruturação. Hägerstrand também considera importantíssima a condição determinante do corpo no ambiente, e coloca certa ênfase nos potenciais e limitações que essa corporalidade oferece e impõe, e o autor se refere principalmente à percepção e à capacidade motoras possíveis a esse corpo, mas também como um corpo vivo que, ipso facto, é necessariamente um ser para a morte –em termos filosóficos–, ou seja, um ser fadado a morrer, e –segundo Hägerstrand– tal dinâmica gera padrões demográficos inevitáveis, e também permite mensurar algumas das interações dos agentes sociais, situando-os no tempo-espaço –é claro–, mas também histórico-geograficamente, através das observações das repetições contínuas de suas rotinas ao longo de suas vidas. Algo que o Big Data e a cultura dos smartphones e computadores atualmente propicia colateralmente, com a coleta sistemática de dados e parâmetros dos usuários. A ideia de Hägerstrand é bastante simplista, resumindo-se a considerar os deslocamentos e estados de copresença dos agentes físicos, mas também os demais movimentos solitários, como se cada agente humano fosse apenas um ponto abstrato –um dado– que se desloca com certa regularidade entre pontos mais ou menos específicos –casa, trabalho, mercado, farmácia, bar etc.–, e sustentando que isso tudo também respeita questões da física, como o fato de que nenhum corpo pode ocupar o mesmo espaço que outro no tempo e no espaço, e isso –segundo Hägerstrand– possibilita a extração de interpretações interessantes, e é em relação também a isso que Giddens traz esse autor como fundamentação coadjuvante em sua teoria da estruturação. É claro que Hägerstrand está sendo em muitos sentido reduzindo e determinando a sociedade mecanicamente em termos de funções, especialmente quando coloca sua ênfase em agentes que mais parecem objetos inanimados numa tela de radar, meros pontos amorfos trafegando num espaço asséptico e predeterminado de bits em duas dimensões de mapas e territórios, mas o que interessa a Giddens ao citar Hägerstrand é justamente associar seu conceito de espaço-geografia como mais uma variável relevante para os estudos e interpretações das atividades sociais, agregando-o à sua própria teoria da estruturação, já que o deslocamento geográfico-espacial é de fato também um parâmetro significativo, que não pode e nem deve –segundo Giddens– ser desprezado35. Ainda apoiando-se em Hägerstrand, Giddens –que também atua como gestor em instituição de ensino– fala-nos de uma escola que é uma espécie de estação ou parada situada ao longo das trajetórias convergentes traçadas por grupos sociais específicos, com hora, local e atividades também específicas, rigidamente distribuídas no tempo-espaço, que acontecem sempre em ambientes analogamente divididos e organizados por categorias rígidas também absolutamente rigorosas, onde de fato acontece um processo importante de socialização, que é a adequação e formatação do agente social em função de necessidades também rigidamente especificadas, produzidas e reproduzidas no tempo-espaço, de acordo com as demandas das respectivas profissões mais solicitadas das diferentes épocas da história. Como nos ensina Giddens, as escolas são organizações disciplinares, o que significa dizer, que são instituições destinadas a adequação não apenas moral e comportamental, mas também cognoscente e intelectivo-cultural dos agentes submetidos aos seus ditames pedagógico-sociais. Receber um diploma –por exemplo– significa estar autorizado pela instituição e pela sociedade a exercer tal ou qual atividade laboral, com o aval da própria sociedade que lhe formou, avaliou e diplomou, e apenas cumprindo todo o rito previamente determinado –da matrícula à diplomação– que o agente social terá finalmente as qualidades sociais necessárias para estar apto a atuar em tal ou qual profissão36. Mesmo porque, nossa cultura tecnocientífica não tolera o conhecimento de senso comum e popular37, detestando tudo aquilo que foge às regras e aos modelos paradigmáticos da ciência solidamente estabelecidos, que são sempre pretensamente seguros, comprovados e reproduzíveis. As escolas, universidades e demais instituições de ensino –segundo Giddens– trabalham básica e necessariamente com poder disciplinar38. Muito desse poder disciplinar diz respeito à internalização de rotinas, horários, regras, ordens, tarefas, provas de desempenho, obediência à leis, obediência às variações de status de poder dos agentes envolvidos, vigência e valor de hierarquias estruturais, convívio social disciplinadamente supervisionado e controlado, enfim, trata-se de uma preparação e capacitação em ambiente minimamente controlado –não apenas educacional, no sentido dos conteúdos estudados, mas comportamentais– para o futuro cumprimento de todas aquelas regras da cultura cotidiana que –no extremo–, determinam todas as atividades sociais de copresença e suas regras intrínsecas, e que estabelecem com precisão impressionante o que é apropriado ou não de ser feito nessa ou naquela situações39. Foucault também é um aliado importante para as fundamentações de Giddens em relação às instituições, e principalmente a influência destas no mantenimento da própria produção e reprodução destas mesmas instituições ao longo do tempo-espaço. E, segundo a leitura que Giddens faz de Foucault, as instituições não apenas mantêm a normalidade nas condutas sociais de copresença, como também atua coercitivamente para que os membros da coletividade zelem pelas expectativas mútuas que uns nutrem em relação aos outros em regime de reciprocidade, mas também para que a rotina social possa fluir sem maiores empecilhos40.
Mas quando o agente por alguma razão não se ajusta a essas condutas pressupostas e esperadas mutuamente por todos na interação social produzida e reproduzida no tempo-espaço coletivo –para usar os termos do próprio Giddens–, o próprio sistema social de longa duração como as suas respectivas instituições estabelecidas e aceitas, produzidas e reproduzidas justamente nas ações cotidiárias de copresença social –e aqui está a grande conclusão de Giddens–, possui formas e maneiras objetivas de sancionar, interditar, penalizar, prender, punir, castigar e até matar –em alguns países que ainda adotam pena de morte como punição capital–, pois a engrenagem de produção disciplinar de poder com Foucault, contrariamente a de Goffman, por exemplo, não produz uma dramaturgia coletiva facultativamente interpretada e protagonizada por atores intencionais que desempenham seus respectivos papeis, mas por um sistema inexoravelmente rígido de disciplina e principalmente poder, que controla e oprime brutalmente quaisquer desvios ou insubordinações. E, nos casos mais extremos desse tipo de coerção social, está o exemplo horrendo dos presídios e campos de concentração das guerras, onde o cerne do que conhecemos como sujeito consciente, ou mais simplesmente aquilo que chamamos de eu ou self, passa a se degradar sensivelmente, devido –é claro– às infindáveis circunstâncias desestruturantes –e aqui o termo se aplica perfeitamente–, já que há uma estruturação reversa, ou seja, as estruturas que mantêm os seres humanos íntegros e saudáveis, vivendo em sociedade, compreendendo-se a si mesmos como minimamente humanos, desfazem-se e se desestruturam forçosamente, num horizonte brutal e sem alternativas da coerção social, em que a sociedade trata de encaminhar às malhas coercitivas do próprio sistema –seguindo Foucault e Giddens– justamente aqueles que não conseguem se ajustar às regras sociais que, por um lado podem e são de fato brutais e coercitivas, mas por outro são estas mesmas regras brutais e coercitivas que normatizam as relações interpessoais, garantindo um mínimo de convívio social saudável e racional, diferenciando-nos das práticas pretensamente brutais e bárbaras que precederam as organizações sociais primitivas, que depois deram origem às sociedades modernas e pós-modernas. Quando sujeitados a situações extremadas assim, os seres humanos reduzem drasticamente seus horizontes de compreensão da realidade e de si mesmos, sobrevivendo a um tipo de pressão e a um tipo de ambiente tão hostil, em que o eu simplesmente tende a ser deformado, atrofiado, mutilado, e reduzido a um nível mínimo tal, que nem mesmo a identidade singular do indivíduo por vezes é preservada, e é nesse sentido que Giddens utiliza Goffman em suas argumentações acerca do poder disciplinar societal41. Ainda surfando na boa onda da pesquisa de Goffman, com suas metáforas dramatúrgicas, e ao mesmo tempo aportando observações e nuances conceituais a respeito de poder e coerção oriundas de Foucault, Giddens –em resumo– traz à tona a importância seminal da compreensão dos moldes e modelos que subjacentemente controlam as atividades dos agentes sociais nas infindáveis situações de copresença, não apenas em ambientes extremos de aprisionamento coercitivo, onde o eu se degrada e degenera, como também na própria vida cotidiana comum, onde –por um lado– as relações entre os sujeitos possuem algum nível de autonomia e liberdade, mas –por outro– continuam absolutamente aprisionados em instintos, hábitos e costumes, e inseridos num sistema repleto de normas, regras e leis, que de tão internalizadas e cristalizadas socialmente, são invisíveis, ainda que possamos ter certeza de sua existência e presença sistemática e constante, comprovando-a na simples observação da vida comum ordinária, em sua manifestação absolutamente trivial, em que todos os agentes e atores têm de seguir –seguindo o raciocínio do próprio Goffman– um mesmo e único script, ou seja, um mesmo e único roteiro de ações, falas e comportamentos, já que a vida social sem dúvida é uma gigantesca e colossal ópera dramática e sanguínea, encenada –é claro– coletivamente42.
Em determinada altura de A constituição da sociedade, Giddens também traz Durkheim à pauta de discussão sociológica, referindo-se criticamente ao conceito de propriedades emergentes, conceito esse que se tornaria fundamental para o pensamento sistêmico e o da complexidade43, com o qual Giddens parece apenas flertar furtivamente, mas não de fato se interessar em compreender e se aprofundar, o que é uma pena, já que a sua teoria da estruturação teria muito a lucrar com um aporte teórico desse tipo, como forma de também compreender o que seja uma estruturação. Grosso modo, como já escrevemos doutra feita acerca da biologia humana44, a sociedade também pode e deve ser considerada como um sistema complexo, como um organismo, cuja atividade gera emergências imprevistas e impossíveis de se conceber a priori, já que ela não pode ser vista apenas como a soma de uma série de suas partes constituintes sob a forma de agentes sociais, pois é justamente da interação dinâmica destes que emerge as características mais surpreendentes e certamente de interesse profundo do pesquisador sociólogo que formula suas indagações acerca dessa problemática. Num só termo: o todo é maior, e por isso transcende mera soma de suas partes constitutivas, e o todo social das interações é dessa maneira a expressão de infindáveis sistemas complexos interagentes, que são justamente os organismos nos quais se encarnam os agentes, e a rede, por seu turno, um sistema ainda mais complexo e multifacetado, que abriga em seu interior fraterno toda a complexidade das situações de copresença originada desses mesmos agentes biológicos45. Giddens também crítica Marx e sua máxima de que os trabalhadores devem sempre –não tendo pretensamente outra opção– vender sua força de trabalho, rejeitando mais esse tipo de determinação absolutamente improcedente, já que os agentes podem não apenas estabelecer outras formas de ligação entre si, que não a econômicas, como também se vincular à relações laborais que se encontram necessariamente eivadas de outros interesses comuns, seja do agente seja da própria organização social46. Mesmo porque, alerta-nos Giddens, há uma espécie de contradição existencial, no sentido de que –por um lado– os seres humanos se sujeitam a um sistema tão avassaladoramente subjugante e cruel, extenuante no tempo e no espaço da vida dos agentes, sendo que são –por outro– seres biológicos, que enquanto unidades, necessariamente vão ter de desaparecer, desintegrando-se, mergulhando novamente nesse inominável nada ontológico que precede a existência de todo ser vivo. Enfim, o contraste entre o fim e a origem efêmeros e inexoráveis da biologia humana, e a própria entrega abnegada do tempo dessa vida biológica dos agentes ao próprio sistema, dá origem –segundo Giddens– à referida contradição47. Enfim, não faz o menor sentido reduzir a vida humana e suas relações sociais complexas a um mero agregado periférico do aparato econômico, industrial e produtivo, nem tão pouco viver praticamente escravizado em função de um sistema econômico desleal e vampirizante, que drena não apenas a força de trabalho e a criatividade humanas, mas também o tempo da vida e a própria existência dos indivíduos subjugados48. O importante –nesse contexto– é compreender que as propriedades estruturais dos sistemas sociais são ambivalentes: por um lado são facilitadoras, benéficas, úteis, mas por outro também coercivas, vinculantes, impositivas, já que disciplinam o que é e será aceitável socialmente ou não nos diversos âmbitos de copresença, trazendo benefícios sociais, confortos –sim–, mas também obrigações e deveres, disciplinas e opressão por poder. Mesmo porque, a vida social é exatamente estar –para usar uma metáfora lúdica nossa– livremente enredado nessa teia de significados e sentidos sociais mútuos, que nós mesmo construímos para nós –seguindo Giddens– nas infindáveis produções e reproduções de situações de copresença a se estruturarem no tempo e no espaço49. Esse horizonte de compreensão da vida humana como algo determinável por meio da posição social e do poder aquisitivo, também é bastante frágil e criticável, já que se apoiando em Marx, Giddens também nos lembra que essa cultura voltada apenas para valores econômicos e produtivos não pode ser considerada algo essencial da natureza humana universal, dizendo respeito a apenas um período bastante curto e restrito da história recente dos seres humanos vivendo em sociedades50. Se nos aferramos apenas ao famigerado ismo proposto por Marx, que evitamos a todo custo sequer mencionar nominalmente, chegaremos a uma imagem e conformação de ser humano desfigurada, que nada mais seria do que uma peça da opressora maquinaria produtiva, dessa economia tosca que relega a própria humanidade e os agentes sociais a um papel de total submissão e degradação51. Giddens também acredita que nem mesmo as tradições mais arraigadas e constantes ao longo do tempo-espaço –como leis, normas e regulações– possam ser não transgredíveis a tal ponto de deixar o agente social imobilizado e sem horizonte de atuação, seja cognitiva, seja politicamente, sendo impenetráveis completamente resistentes à mudança, e nesse sentido Giddens leva em consideração em sua teoria da estruturação a vontade e as intenções dos agentes em contínuas interações. Para ele é um erro se tornar escravo de esquemas e sistemas fechados, que nunca conseguem prever sequer a existência de agentes intencionais comuns, quanto mais ainda os potencialmente rebeldes, inauguradores, desviantes, revolucionários, organizados e mobilizados ou não no sentido de uma causa social comum52. Os movimentos sociais são, nesse contexto de articulação e seguindo Giddens, empreendimentos coletivos com finalidades comuns específicas –a própria criação, reprodução e manutenção da vida social–, que de fato não podem ser totalmente controlados de fora pelos Estados e governos, pois refletem fenômenos complexos e dinâmicos das próprias atividades cognitivas coletivas, e expressam uma forma de comportamento social emergente e sistêmico de fato imprevisível, em que os participantes não correspondem necessariamente a papéis sociais convencionados previamente determinados53. Mesmo porque, levada ao pé da letra, tal ideologia enxerga e conta uma história importantíssima da humanidade, mas restrita no tempo-espaço, não podendo ser aplicada satisfatoriamente às diversas fases da humanidade que não giravam em torno daquilo que Marx e Engels viveram, compreenderam e registraram em seu tempo54. O poder –segundo Giddens– não está necessariamente ligado a uma espécie de obstáculo à liberdade que não pode ser enfrentado nem superado, mas como algo que carreia de maneira invisível, um tipo de força coercitiva onipresente, que se produz e se reproduz ao longo do tempo-espaço, enquanto está –para usar a terminologia do próprio Giddens– em plena estruturação55.
Além disso, ainda no tocante ao estilo teórico, percebemos que Giddens também apresenta uma postura desprovida de arrogância ou prepotência, principalmente na apresentação de suas ideias, como também na sabedoria de incluir em seu próprio repertório teórico, os estudos e pesquisas de outros autores que lhe pareçam interessantes e convergentes, contanto que a articulação teórico-discursiva funcione e faça sentido na hora de fundamentar a sua teoria da estruturação56. Um bom exemplo é o debate filosófico existente em torno das teorias comunicativas, que centram a maior ênfase nos atos de fala dos agentes, que, com o tempo, acabou por se revelar insuficiente, já que a linguagem verbal falada não pode ser senão mais uma variável auxiliar na construção do que sejam os significados das relações humanas, que são por sua vez mais complexos e estruturantes, incluindo qualias e signos, seres autopoiéticos acoplados estruturalmente, numa teia de significação perceptiva e cognoscível da realidade, que precede em muito a própria linguagem verbal falada. Giddens –em sua inclusividade– não ignora tais fatos, e por isso prefere não preterir nem de um nem de outro modo de compreensão57. Essa sabedoria nada prepotente
–com efeito– é a chama que mantem a teoria da estruturação de Anthony Giddens acesa para nós, que buscamos um entendimento profundo de suas proposições, sem nos enroscarmos em quaisquer tipos de ismos ou histerias mutilantes. A inciativa e a própria produção de uma teoria sociológica que se dá em loco, nas próprias situações de copresença, protagonizada por agentes e unidades sociais intencionais, mas que absolutamente não ignora a estrutura e os diversos modelos de estrutura já concebidos e úteis á análises, usados e aplicados na própria atividade sociológica, é – segundo nosso entendimento – o suprassumo das hipóteses e teorizações desse autor. Esse gosto eclético certamente é um atrativo a mais, quando se mergulha na excelente obre que é A constituição da sociedade. Além disso, Giddens sabe que a vida comum dos agentes é absolutamente importante e indispensável à análise sociológica, mas não deixa de reconhecer, por outro lado, que a estrutura produzida e reproduzida –para usar a terminologia de Giddens– também imprime e determina muito dos comportamentos dos sujeitos e agentes sociais, já que a própria estruturação das relações dos agentes nas infindáveis injunções societais reifica a estrutura ao produzi-la e reproduzi-la no tempo-espaço, para usar a formulação e a própria terminologia de Giddens. E uma das grandes qualidades de Giddens é justamente perceber que tudo se passa necessária inexoravelmente com os sujeitos e agentes sociais, e de que esses são fundamentais na compreensão do que sejam quaisquer socializações, que são seres biológicos topologicamente situados, mas aqui estanca, e isso é algo que gostaríamos de tratar com algum detalhe e calma, já que se trata de matéria basilar. A sociologia quer compreender as relações da vida humana, mas a vida humana é a própria manifestação e expressão do ser humano, e seu corpo vivo segue a lógica dos organismos. Nos mesmos já escrevemos longamente sobre isso, onde versávamos sobre esse ser-aí-jogado-no-mundo como necessariamente um corpo situado topologicamente no empo e no espaço, um agente intencional e consciente inserido no mundo, e é apenas essa criatura da biodiversidade que pode –juntamente com seus congêneres biológicos– exercer o protagonismo de qualquer socialização, e –ipso facto– poder ser objeto de teorização, sem por isso ter que desprezar os modelos e sistemas abstratos existentes as teses das redes e estruturas, que sem dúvida também nos auxiliam a compreender, por meio de representações mais ou menos idealizadas, mas ainda assim sem dúvida úteis –seguindo Giddens–, ainda que sem reduzir e nem predeterminar teoricamente nada em função de uma única variável.
Voltando ao protagonismo do ser, é justamente aqui, nesse ponto especificamente, que percebemos a carência de uma ligação externa mais ampla e sólida da teoria da estruturação de Giddens com a biologia e a própria bioevolução, matérias que ele apenas menciona rapidamente através de Darwin e Parsons, mas que não se inclina a aprofundar. Mais especificamente, é gritante a ausência de conexões com as noções extremamente importantes e elegantes de autopoiese e de seres autopoiéticos –por exemplo–, de Humberto Maturana e Francisco Varela, pois aqui teríamos uma forma de compreender aspectos de natureza comportamental importantes, e em certo sentido atemporais, pois toda a socialização que existiu até então e ainda existe, ou seja, todo o processo dos nossos ancestrais de se tornarem Sapiens, está intimamente ligado à estruturação das sociedades humanas como tal, desde aqueles longínquos tempos até hoje, e é aqui –acreditamos– que a teoria da estruturação de Giddens poderia alcançar uma amplitude maior e menos restritiva temporalmente, e também em termos de horizonte de compreensão pluridisciplinar –coisa que Giddens já faz naturalmente–, abarcando a emergência da própria mente inteligente humana como algo importante na estruturação também dos grupos de hominídeos que debandeavam pela Terra naqueles tempos ora remotos, seres que viveram e precederam essa era contemporânea a que Giddens desnecessariamente pretende restringir a aplicabilidade de sua teoria, mas disso, especificamente, trataremos na sessão final desse trabalho58. Por hora, vale destacar que é o ser biológico topologicamente situado no tempo e no espaço, o único agente apto para ser e agir no ambiente como unidade social, por meio de um corpo vivo que é a própria expressão do ser, e que esse ser precisa a todo custo sobreviver e levar à diante sua mensagem genética, e que tal entendimento pode ser uma das variáveis mais seminais e antigas da própria espécie, pois tem sua origem juntamente com os primeiros processos de socialização ainda nascentes59. O que queremos dizer, é que essa concepção de estruturação no tempo-espaço proposta por Giddens, não pode e nem deve se restringir apenas aos tempos atuais e à contemporaneidade, pois sugerimos aqui justamente que a teoria da estruturação se aplica ao período Neolítico e à época extraordinária em que nossos antepassados longínquos protagonizavam a própria emergência da autoconsciências nas mentes, e também –como tentaremos demonstrar– que essa autoconsciência foi fundamental para a percepção nada trivial do indivíduo da mente do outro, como um modelo de mente similar à sua própria mente, o que de certa forma veio a definir o que Giddens chamaria de estruturação.
Interpretação
Nas ciências sociais, ‘a prática é objeto da teoria. Nesse domínio, a teoria transforma o seu próprio objeto’. As implicações disso são muito consideráveis e têm a ver com o modo como avaliamos as realizações das ciências sociais, assim como seu impacto prático sobre o mundo social.
Anthony Giddens (2009, p. 410)
A interpretação do papel da sociologia na sociedade e a própria interpretação que Giddens concebe em relação aos dados e pesquisas que ele mesmo elege como significativas nas suas argumentações, dá-nos a medida exata de seu amplo horizonte de compreensão de mundo e de realidade, tomando um empréstimo da linguagem filosófica, mas também sua habilidade argumentativa inclusora, que atualiza, reconcilia e harmoniza os mais diversos autores e teorias. E, ao tomarmos conhecimento da teoria da estruturação e seus respectivos embasamentos, percebemos que Giddens acerta em cheio quando busca basear suas próprias ideias em trabalhos intelectuais pregressos de seus colegas e pares –independentemente de integrarem tais ou quais correntes de pensamento–, permitindo-se assim gozar de muito mais mobilidade teórico-discursiva, ao abordar pontos específicos e significantes na sustentação de sua teoria60. A ideia em muitos sentidos elegante de um agente social que é e faz a própria estrutura que integra a um só tempo, enquanto age, reifica, produz e reproduz essa mesma estrutura nas infindáveis situações de copresença, agindo e se comportando de acordo com ela mas também a perpetuando, abre um leque de interpretações interessantíssimas e dignas de nota para o investigador social. E a primeira delas seria interpretar a própria teoria sociológica proposta por meio dessa mesma ótica. Nesse contexto, Giddens frisa que não faz sentido buscar –por exemplo– leis universais nas ciências sociais, já que tudo acontece nas próprias estruturações contínuas perpetuadas ao longo do tempo e do espaço, para usar a terminologia do próprio Giddens, dependem em muitos sentidos não só das estruturas sociais, mas também dos agentes e suas respectivas motivações subjetivas, e isso é simplesmente não universalizável. Ipso facto, não há motivo algum para se apanhar quaisquer conjuntos de dados estatísticos particulares e específicos, e a partir deles tentar encontrar utilidades, mecanismos e funções universais61, que sejam válidos também para outras sociedades e situações, que não aquelas das quais os dados foram extraídos, já que nem mesmo para essas, é possível fazer generalizações definitivas e universalmente válidas. Sim, pois estrutura e agente –nesse sentido– determinam-se mutuamente o tempo todo no transcorrer das próprias interações de copresença das atividades sociais, que por sua vez se reproduzem no espaço-tempo, e é assim que os sistemas sociais operam, e é também por estas razões que Giddens rejeita peremptoriamente quaisquer proposições acerca de leis universalmente válidas, no que tange as ciências sociais, e para o autor a inexistência de leis universais não é uma mera casualidade, e é nisso também que ele baseia na sua teoria da estruturação62. Até porque, falar seriamente em termos de utilidades, mecanismos e funções, significaria também recair no mesmo erro que aqui tratamos de sistematicamente criticar sobre os famigerados ismos.
Outro aspecto que consideramos fundamental para a compreensão da teoria da estruturação que Giddens nos oferta, diz respeito justamente a um destes ismos, acima mencionados, já que, para ele, o estruturalismo, como um conjunto de regras e recursos teóricos, é uma forma de pensamento estático que se encontra isolado em si mesmo, e necessariamente longe do tempo e do espaço, e é por isso que Giddens retira o ismo do termo estruturalismo e reintroduz a concepção de estrutura novamente nas atividades sociais de copresença no tempo e no espaço, transformando o termo e o próprio conceito em algo dinâmico e vivo, que ocorre no tempo e na ação das partes no todo social enquanto há a socialização63. Ou seja, ao invés de considerar apenas um modelo idealizado de conceito de estrutura, totalmente pré-concebido e abstratamente isolado, Giddens prefere conceber a noção de estrutura como um processo que se reproduz, conforme os agentes interagem no tempo e no espaço, daí a importância dessa sutil modificação de estruturalismo para estruturação, e essa é –segundo o nosso entendimento– a grande contribuição qualitativa de sua obra em relação à teoria social contemporânea64. Ademais, o estruturalismo –então– apoia-se na ideia reducionista e determinista de que a estrutura seria muito mais importante do que os próprios agentes no cerne das atividades sociais de copresença, no que se refere a investigar e propor perguntas sobre a sociedade e a atividade dos agentes sociais em interação65. Sob a racionalidade dos adoradores fanáticos do ismo da estrutura, estes agentes e atores biológicos, juntamente com suas respectivas intencionalidades subjetivas, seriam absolutamente secundários, muitas vezes terciários ou mesmo irrelevantes na atividade de compreensão das sociedades, e assim, concebe modelos com sua ênfase quase que exclusiva na rede social, focando a atenção principal nas relações da rede e seus sistemas, instituições e demais conexões que possam ocorrer nesse horizonte macro de compreensão, mas nunca nos indivíduos e atores biológicos, ou seja, sem nenhuma ou quase nenhuma ênfase nos seres intencionais e suas cognições subjetivas e criativas que criaram e ainda criam –inclusive– o próprio sistema estrutural aqui referenciado. O principal problema desse tipo de teoria –inspirados em Giddens– é ignorar outras formas de estruturação, teorização e pensamento, que não sejam as suas próprias, intrínsecas e pretensas verdades, mutilando –em muitos sentidos– a própria realidade sociológica que se pretende investigar, transfigurando o objeto de estudo, e impondo arbitrariamente um único modelo66. Igualmente, temos de estar atentos também ao que Giddens chama de dualidade da estrutura. Grosso modo, podemos dizer que tal conceito expressa a ideia de que as propriedades dos sistemas sociais são –há um só tempo– meios e fins de si mesmos. Eles são estrutura, e eles também se estruturam na própria prática que produzem e reproduzem no tempo e no espaço, e isso é uma forma bastante razoável –acreditamos nós– de se compreender as coisas. Ou seja, quando as práticas estão acontecendo –ou seja, se estruturando– elas estão ao mesmo tempo reificando, criando, reproduzindo e mantendo o próprio sistema social expresso pela estrutura, e como isso não é algo que acontece estaticamente na abstração, e sim em pleno movimento geográfico, espacial e temporal, a teoria da estruturação de Giddens nos parece possuir não apenas elegância e graça teórica, mas também um alto grau de razoabilidade concreta, de maneira que consideramos sua hipótese da estruturação como uma hipótese forte67. E essa percepção do processo de estruturação que Giddens nos oferta não se resume às abstrações teóricas, mas também dizem respeito à realidade, já que gera consequências sociais, na medida em que a sociologia e as ciências sociais devolvem à sociedade suas conclusões –ou seja, elas retroagem sobre ela–, e esse fruto sob a forma de conhecimento também vai –por sua vez– interferir e influenciar a própria realidade das sociedades que refletem sociologicamente sobre si mesmas. E aqui não se trata apenas de figura de linguagem, já que essa percepção clara da capacidade de retroação da disciplina sociológica no próprio campo e objeto de estudo pesquisado, também joga luz no âmbito da própria responsabilidade social do sociólogo e investigador que, ao estudar qualquer sistema social, também está a um só tempo a influenciar e transformar seus objetos de estudo e pesquisa, estruturando-os, ou seja, os próprios agentes sociais e os próprios sistemas sociais, dos quais também fazem parte, em última instância e no extremo constroem a si mesmos. Giddens também nos fala de uma sociologia atual, na qual o estilo literário não é considerado irrelevante para a exatidão das teorias sociais estudadas, ou seja, a forma de expressar os conhecimentos, e os resultados das pesquisas empreendidas e apresentadas, também contam na hora de construir possíveis modelos da realidade social, lembrando-nos que o cientista social é também um comunicador, que apresenta redes de significados e sentidos associados com certos contextos específicos da vida social, comunicando e informando esses saberes a outros grupos sociais, muitas vezes diferentes daqueles que são pesquisados e apresentados na pesquisa original68.
Conclusão
De acordo com a teoria da estruturação, o momento da produção da ação é também um momento de reprodução nos contextos do desempenho cotidiano da vida social.
Anthony Giddens (1997, p. 31).
Se até aqui nos detivemos principalmente elencado os acertos e qualidades inegáveis da teoria da estruturação69 de Anthony Giddens, apresentada no seu livro A constituição da sociedade –que hora resenhamos criticamente nesse ensaio–, é preciso que nos detenhamos também agora sobre alguns aspectos que detectamos como frágeis, questionáveis, ou mesmo que se encontram carentes de uma maior fundamentação teóricas. Ainda que a referida obra e a respectiva teoria, e também o próprio autor em questão –frisemos–, demonstrem de fato possuir uma consistência e elegância teóricas robustas, bem como capacidade de resistir a um escrutínio mais detido e cuidadoso em termos de crítica, e tudo isso devido a sua indubitável qualidade teórico-discursiva, e sua já mencionada metodologia inclusiva e abrangente, que merece a nossa sincera admiração e respeito. O primeiro desses aspectos, um tanto gritante na referida obra é de caráter historiográfico e etnográfico pregresso, ou seja, é justamente não mencionar um hiato de tempo muitíssimo importante que existiu antes das sociedades modernas, e que organizou os primeiros alicerces da vida em grupo, precedendo dessa forma a constituição das tribos e aldeias, e que recobre tudo que aconteceu em termos de transformações com o nosso filo ao longo desse tempo primevo e imemorial, muitíssimo antes que pudesse surgir o extraordinário e prepotente Sapiens. Esse nexo se liga a um outro, que é justamente o histórico-biológico, absolutamente crucial que se encontra quase que completamente ausente na referida obra, o que não a inviabiliza –é claro–, mas por certo enfraquece as fundamentações estruturantes da própria teoria da estruturação que Giddens está a nos ofertar, e isso acontece em razão do autor aparentemente ignorar causas, fatores e determinantes básicos do corpo inteligente e enativo, situado topologicamente no espaço-tempo do mundo70. Ignorar a história bioevolutiva desse corpo, desde suas origens mais profundas e remotas, até a emergência da mente consciente no cérebro biológico de nossos ancestrais, significaria também virar as costas para os indícios genealógicos que explicam as razões mais basilares dos organismos situados nesse mesmo tempo-espaço que Giddens referencia como em plena estruturação, e igualmente ter de desprezar a história do cérebro na biologia, e da própria mente consciente que, afinal, viria a se socializar por necessidade, em torno de atividades objetivas e necessárias do cotidiano, como sobreviver, comer, não ser comido, acasalar, gerar prole, encontrar abrigo, levar adiante sua mensagem genética, e assim por diante. É verdade que lá pelas tantas de A constituição da sociedade71 –citando Parsons, Steward, Huxley, White e Sahlins–, Giddens até tenta reconhecer por espelhamento que a corporalidade biológica é aspecto central de qualquer teoria social, já que sem o ator agente e ativo, a rede nada é, senão um modelo abstrato, que diz mais respeito a si mesmo e às mentes dos que a conceberam, do que à realidade societal objetiva do mundo, mas mesmo assim Giddens não pôde reconhecer o vínculo inquebrantável do Sapiens Sapiens com as demais espécies vivas, nem tão pouco a história bioevolutiva comum que a odos engloba, história essa que, entre outras coisas, esconde as pistas do processo que levou à emergência da mente consciente no cérebro dos nossos ancestrais, e com ela os fundamentos estruturais das próprias sociedades humanas.
Outra fragilidade relativamente significativa nesse contexto crítico que apontamos, principalmente quando se considera o nível do agente social envolvido na própria teorização sociológica em questão –que em muitos sentidos diz respeito ao que acabamos de mencionar imediatamente acima–, foi querer tratar de tópicos complexos da biologia e da bioevolução como consciência, memória, intencionalidade e a própria formação da fisiologia humana, sem perceber a complexidade do assunto em que involuntariamente resvalava, e sem se ocupar com as origens profundas desse órgão extraordinário que gera a consciência social chamado cérebro. A própria consciência, assim como a conhecemos e conceituamos –sustentamos resolutos–, também foi e ainda é um fenômeno preponderantemente biológico, mas também determinantemente social, que emergiu como uma necessidade recíproca do convívio de nossos ancestrais hominídeos, na busca de uma vida mais satisfatória e eficiente para o enfrentamento do mundo. Grossíssimo modo, poder ter um modelo da mente do outro semelhante a si mesmo no interior de sua própria mente, como recurso decisivo para a ação inteligente no ambiente não apenas ecológico, mas também social –seguindo Mithen e Humphrey–, foi um fator certamente crucial. Poder compreender que ali, diante de si, encontrava-se um ser semelhante, foi, então, decisivo para determinar os comportamentos que pudessem favorecer a socialização dos grupos humanoides no dia a dia –como a caça coordenada e em grupo e a própria divisão do alimento e do trabalho–, e é nesse sentido que a mente consciente não apenas de si, mas também dos outros, surgiu –seguindo novamente Mithen e Humphrey– como uma necessidade absolutamente social72, algo que o convívio acabou por simplesmente obrigar, por tornar uma necessidade inexorável e central, sob pena de não poder haver coordenação de ações triviais em grupo, divisão do trabalho, cooperação, o que se dizer então acerca de sociedades complexas e desenvolvidas. Como Ilya Prigogine e Edgar Morin definem muito bem, é importante compreender com certa clareza que –quando tratamos de bioevolução–, são histórias de seres que se misturam entre si ao longo do tempo, mas que ainda assim guardam inexoravelmente uma ancestralidade genealógica única e comum73.
Uma outra pequena desatenção nas fundamentações que precedem a apresentação propriamente dita da teoria da estruturação de Giddens, é o autor ter se fiado única e exclusivamente em uma semiótica que não a de Charles Sanders Peirce, que é certamente superior em relação à de Ferdinand de Saussure ou mesmo à de Noam Chomsky, já que essas últimas se baseiam num vínculo estreito com a linguagem verbal discursiva, o que é de fato uma grande desvantagem limitadora em relação a Peirce, cuja semiótica é mais lógica e mais complexa, com uma gama de aplicações praticamente ilimitada, diríamos até mais elegante teoricamente do que todas as demais semióticas precedentes juntas. Talvez –o que acreditamos ser difícil e pouco provável– Giddens não tenha tido a chance de um contato profícuo com a semiótica peirceana, mas de todo o modo, consideramos isso como uma espécie de flanco aberto, pois a teoria peirceana e triádica dos signos dialogaria muito mais diretamente com a sua própria teoria da estruturação. Ainda sobre esse tópico, se a teoria da estruturação de Giddens estivesse alinhada hipoteticamente à teoria semiótica de Peirce, e não a de Saussure ou Chomsky, por certo que haveria muitíssimo mais oportunidades de transversalizações e convergências teóricas enriquecedoras, e principalmente aplicabilidades mútuas de ambas as teorias, ainda que a obra teórica e lógica semiótica de Charles Sanders Peirce seja de dimensões incomparáveis –acreditamos– com a de Anthony Giddens, em termos de volumes tratando de um único sistema de pensamento, já que Peirce se dedicou exclusivamente a ela durante sua vida. Um último comentário quanto a isso, diz respeito a um outro aspecto potencialmente convergente, que é a aplicabilidade muito interessante que a semiótica permite em relação ao mundo natural e à biologia, que é ser capaz de se aplicar à própria natureza física e pretensamente inanimada, à natureza do mundo ontofenomênico dos organismos vivos, com suas complexas capacidades de percepção, tanto é assim que, um ramo da semiótica, intitula-se biosemiótica, ou seja, dedica-se com mais ênfase às relações dos signos e significados em relação aos organismos biológicos vivos e seus acoplamentos estruturais com o meio74. O que queremos dizer, é que se tomássemos o agente social em plena atividade de copresença na socialização, e o próprio sistema estrutural como uma dinâmica sistemicamente semiótica em sua própria estruturação –, é possível que muitas indagações novas e interessantes pudessem surgir nos estudos das atividades sociais. Ainda em relação à ideia de corpo situado no mundo, no espaço e no tempo, que Giddens compreendeu muito bem e de fato utilizou na fundamentação de suas ideias, é possível perceber também que o referido autor ou não quis ou simplesmente não se aprofundou completamente na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, que ele de fato cita fugitivement, como quem furta uma cor ausente, ou na realidade não compreendeu a amplitude e a importância daquilo que esse filósofo ensina acerca do corpo-agindo-no-mundo, como um corpo que precisa seguir adiante –para lançar mão de uma ideia conceitual muito usada pelo próprio Giddens–, aquele mesmo corpo que encarna o ser-jogado- ái--no-mundo que Martin Heidegger denominou como dasein, que vai –inexoravelmente– ter que enfrentar a realidade ao seu redor, realidade essa continuamente mutante e dinâmica. Pois ser um ser vivo é necessariamente ser um corpo situado nesse mesmo mundo-tempo-espaço –para o qual Giddens chama sistematicamente a nossa atenção–, ou seja, ser um organismo vivo, e há uma história evolutiva subjacente a tudo isso –frisemos–, e essa evolução se dá única, necessária e inexoravelmente, no corpo biológico vivo. E, se há relações entre agentes sociais, essas relações sociais recíprocas são –seguindo Giddens– necessariamente relações de corpos biológicos no tempo-espaço, independentemente das teorizações e nomenclaturas que resolvamos adotar, no sentido de que importa menos os títulos que adotamos para os padrões que identificamos, do que as próprias realidades que procuramos compreender, e, nessa crítica, nem mesmo os grandes nomes do pensamento humano universal poderiam passar incólumes perante Giddens75.
Lembrando ainda que –sobre esse mesmo tema–, tratamos não apenas de corpos vivos, mas de corpos vivos com mentes inteligentes e sensíveis, mentes que possuem dentro de si modelos de outras mentes também inteligentes e sensíveis. Mentes conscientes que ditam, determinam, produzem e reproduzem os comportamentos desses mesmos corpos, mas que ainda assim também estão igualmente à mercê das estruturas sociais que eles mesmos criam ao longo do tempo e do espaço. Enfim, tratamos de corpos que se reproduzem e produzem a própria sociedade de corpos em contínua interação social no tempo e no espaço, e é aqui que a teoria da estruturação de Giddens parece fazer ainda mais sentido paranós76. Giddens – com efeito– reconhece e menciona algumas vezes essa dimensão da corporalidade dos agentes sociais como de fato determinante e importante, mas não avança no sentido ligar os pontos que se encontram apenas aparentemente desconectados, que pretensamente separariam –por um lado– a importância do corpo intencional nas injunções sociais, e –por outro– a história bioevolutiva desse mesmo corpo biológico intencional –frise-se–, que por sua vez mantêm infindáveis laços com a bioevolução e com as demais espécies vivas, no sentido (i) de derivarem de um mesmo e único ancestral comum77, no de (ii) possuírem e desenvolverem corpos com determinadas formas e especificidades pelas mesmas razões, no de (iii) desenvolverem cérebros e sistemas nervosos para análogos fins de sobrevivência, no sentido de que são seres que (iiii) em muitos casos são não apenas inteligentes e conscientes, mas também conscientes de suas próprias consciências, e no de (iiiii) por fim ainda se organizarem em sistemas sociais complexos, tendo como conclusão necessária de tais premissas, o fato um tanto lógico e dedutível de não podermos simplesmente virar as costas para as origens ancestrais das primeiras estruturações, pelo menos não no sentido que Giddens propõe em sua teoria da estruturação, pois –segundo nossa proposições interpretativas– as bases dessa mesma estruturação social teriam começado a se fundar exatamente quando começamos a dominar o fogo, lascara a pedra, construir ferramentas e armas, dividir e organizar o trabalho coordenado, enfim, quando começamos a nos tornar Sapiens. Pois –seguindo a lógica proposta pelo próprio Giddens, de que a estrutura se reifica, produz e reproduz a si mesma no tempo-espaço, na medida que os atores se relacionam em situações de copresença– sendo assim os fundamentos originários da vida gregária e social, dinâmicas estas nas quais provavelmente teriam começado a se estruturar justamente as sociedades, realizando assim a referida estruturação. Propomos que tudo começa a se estruturar –no sentido dado por Giddens– justamente quando começamos a conviver e agir como um corpo social inteligente e organizado, e as razões desse corpo e dessa organização são necessariamente bioevolutivas. Em suma pretender ignorar a história pregressa do Sapiens Sapiens como pelo menos uma variável importante a ser considerada na busca do entendimento sociológico da própria socialização, seria não apenas um contrassenso, como também ter de literalmente virar as costas para os progressos e descobertas de ciências importantes como as cognitivas e neurológicas –por exemplo–, sem mencionar as ciências naturais, antropológicas, paleontológicas e até –nesse contexto– genéticas. Nós, por nosso turno, acreditamos que até mesmo a sociobiologia Ruse possa contribuir beneficamente nessa busca de compreensão das estruturações mais seminais das sociedades humanas.
Ademais, se Marx privilegia a luta de classes e o materialismo histórico como variável mais determinante de seu pensamento social, ou como a única variável de fato significativamente relevante; e se para os mesmos fins Durkheim, por seu turno, toma como parâmetro principal as leis e normatizações sociais das instituições e a divisão social do trabalho nas sociedades, suas infindáveis relações e consequências; e se Foucault em sua análise de sociedade só considera o exercício do poder e da coerção, tendo o Estado como algo apenas nocivo à liberdade e à individualidade; e se para compreender o macrocenário que engloba tudo isso, Darwin ainda nos apresenta a sua brilhante teoria da evolução das espécies, que acontece por meio de infindáveis adaptações evolutivas subsequentes, tendo os mais aptos como aqueles que têm a maior chance de sobreviver e conseguir levar adiante sua mensagem genética; e se em Merleau-Ponty e Parsons temos a ênfase recaindo sobre a corporalidade de todo ser vivo; e se Freud aposta tudo que tem na sua tríade ego, superego e id em eterno conflito no interior desse mesmo ser; e se Goffman concebe esse eu se comportando como um ator, inserido na grande dramaturgia encenada coletivamente, onde há uma reciprocidade mútua de expectativas e comportamentos dos corpos desses atores e atrizes, e que se estende à linguagem verbal falada e seus maneirismos; e se Hägerstrand por seu turno privilegia apenas os deslocamentos geográficos desse ser pretensamente desimportante, que só importa de fato, se visto desde uma perspectiva maior e mais abrangente do conjunto; e se –generalizando– alguns preferem trabalhar com maior ênfase apenas nas quantidades, e não nas qualidades, e preferem olhar e analisar apenas a estrutura, e não as próprias unidades sociais; e se Giddens, finalmente –com imensa sabedoria– correlaciona tudo isso num enorme mosaico sociológico, para nós parece faltar um nexo causal fundamental, que conecta tudo isso que Giddens nos apresenta com o processo histórico, geológico e até cosmológico subjacente, dinâmica que levou e trouxe a vida num só empuxo da física à química, e da química e da matéria inerte à própria matéria viva por meio de uma primeira vida, e da vida unicelular à vida pluricelular, e desta então à vida de todos os seres que andam e que já andaram sob a face da Terra, pois todos estão ligados nessa mesma e única história bioevolutiva pregressa e maior, que, segundo o nosso rude entendimento, não pode ser ignorada nem preterida nas análises e criações de teorias sociais, pois ela é –com efeito– o cerne de variáveis comportamentais absolutamente basilares, e que estão presentes em nós e nossos ancestrais desde os tempos mais remotos e imemoriais. Nomeadamente, referimo-nos às condições, perturbações e restrições sistêmicas, que estão presentes nos acoplamentos estruturais dos agentes vivos e autopoiéticos no seu contexto e ambiente natural –os biomas–, incluso aí –é claro– o convívio nem sempre pacífico e fágico com pares, predadores e presas, no interior das cadeias tróficas. Num só termo, gostaríamos de sugerir que uma das variáveis fundamentais do comportamento social dos seres humano se encontra ausente das fundamentações da interessantíssima teoria da estruturação de Anthony Giddens, já que, sem sobrevivência, sem permanência no tempo e no espaço, sem perpetuação do filo, sem levar adiante a mensagem genética dos grupos, e principalmente sem o longo caminho que os nossos antepassados mais distantes trilharam até se tornarem humanos, no sentido social do termo, não é possível traçar uma compreensão consequente e coerente, nem definir com certeza as prováveis razões que nos fizeram ser o que somos hoje como Sapiens Sapiens, já que são essas mesmas razões que estão presentes nas organizações sociais e comportamentais humanas de todos os tempos, e isso se aplica da pedra lascada às inteligências artificiais. Aliás, à guisa de conclusão, arriscar-nos-íamos a apostar algumas fichas teóricas na ideia de que as próprias tecnologias –por si– sejam também uma das variáveis mais importantes para entender os seres humanos e suas relações estruturais, e que sejam elas talvez uma das mais tangíveis formas de se refletir sobre a natureza de uma determinada sociedade e ainda compreendê-la. Mas tudo isso, é claro –seguindo Giddens–, sem nunca esquecer as demais variáveis sociológicas existentes já conhecidas e reconhecidamente úteis ao nosso pensamento, e, por isso mesmo, produzidas e reproduzidas socialmente através dos tempos. Mesmo porque, ser humano, mais do que nunca –como pregressamente escrevemos em algum lugar que não lembramos– é ser necessariamente tecnológico, de maneira que apontamos essa variável –também– como promissora em termos de determinações das práticas sociais humanas e suas possíveis análises. Conclusivamente, podemos afirmar que Anthony Giddens ainda possui uma característica que nos chama bastante a atenção –positivamente– , que é justamente estar atento às diversas possibilidades teóricas existentes, e também nos lembrar a todo instante que as ciências exatas e quantitativas da própria sociologia nunca são capazes de alcançar sozinhas aquele âmbito humano onde os atores interagem e de fato manifestam –para usar os termos de Giddens– a própria estruturação das sociedades humanas78. Esse tipo de horizonte de compreensão aberto e abrangente, sem rígidas amarras ou mesmo ismos, não só nos agrada, como também nos inspira a acreditar que seja possível colaborar na construção de uma ciência social menos embotada de velhas dicotomias e incompatibilidades, menos escravizada por ideias petrificantes já erodidas pelo tempo e pela história, já que a própria construção do conhecimento sociológico nos parece ser uma causa não apenas digna e nobre, como também necessária e útil para compreendermos de fato quem somos nós.
Bibliografia
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Giddens, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
Johnson, Allan G. Dicionário de sociologia: Guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
Mithen, Steven. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
Quaresma, Alexandre. Inteligência artificial e bioevolução: Ensaio epistemológico sobre organismos e máquinas. Dissertação de Mestrado pelo programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), 2020.
___________. Inteligência artificial fraca e força bruta computacional. Rio de Janeiro: No prelo, 2020.
Varela, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleonor. A mente corpórea: ciência cognitiva e experiência humana. Lisboa: Instituto Piaget, 1991.
1 Este ensaio teórico-reflexivo de interpretação sociológica é dedicado à minha companheira há mais de vinte anos Christina Garcia, que aniversaria na data de hoje, e que é eterna reitora da minha universidade livre, e que sempre esteve ao meu lado incondicionalmente na vida, e não apenas nas atividades filosóficas e reflexivas, de maneira que é a ela que quero homenagear carinhosamente por meio da dedicatória simbólica dessa singela peça epistemológica.
2 Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), escritor ensaísta e filósofo brasileiro, pesquisador de tecnologias e consequências sociais, com especial interesse na crítica da tecnologia. Correio electrónico: a-quaresma@hotmail.com
3 Durante seis anos e meio, aproximadamente, contribuímos regularmente para duas importantes revistas de ciências humanas de circulação nacional no Brasil, e também muito lidas e bem conceituadas entre os pares e os próprios estudantes interessados, a saber: Revista Sociologia, Ciência e Vida e a Revista Filosofia, Ciência e Vida. Durante esse tempo, pudemos escrever e publicar mais de cinquenta artigos e colunas, além de realizar diversas entrevistas com filósofos e sociólogos importantes do Brasil e do exterior, dos quais destacamos Pierre Lévy, David Le Breton, Alan Dello Buono, Ignácio Quintanilla Navarro, Víctor Sepúlveda Figueroa, Umberto Galimberti, Hugh Lacey, Winfried Nöth e Lucia Santaella. Nosso envolvimento com a sociologia seguiu adiante por meio de recorrentes pesquisas independentes, mas também graças à convivência continuada com sociólogos da RENANOSOMA (Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente) e do ESOCITE (Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias) em congressos e seminários, dos quais destacamos os amigos professores Paulo Roberto Martins, Fabrício Monteiro Neves, Adriano Premebida, Léo Peixoto, Gilson Lima, Tania Magno, Leila Zidan, Wilson Engelmann, Ricardo Neder, Renato Dagnino, Eduardo Devés e Ivan da Costa Marques, aos quais sou imensamente grato, não apenas pela amizade, mas também pelo inestimável aprendizado sociológico ao longo desses anos.
4 Como consta no Dicionário de Sociologia: Guia prático da linguagem sociológica de Allan Johnson (1997, p. 217): “Sociologia é o estudo da vida e do comportamento social, sobretudo em relação a sistemas sociais, como eles funcionam, como mudam, as consequências que produzem e sua relação complexa com a vida de indivíduos”. No mesmo verbete de Johnson (1997, p. 217-218), temos que o “fundamental para qualquer definição do ponto de vista sociológico é a ideia de que o todo é maior do que a soma de suas partes, pois o todo inclui também as relações que ligam entre si as partes, o que em geral não pode ser obtido apenas pelo conhecimento das partes. [...] Os sistemas sociais são conjuntos de arranjos nos quais indivíduos participam, de forma muito semelhante aos jogos que tomam parte. [...] Tomando emprestada uma linguagem da química, uma molécula não pode ser compreendida pelo estudo exclusivo das características de cada elemento que dela ‘participa’. Na verdade, praticamente nada sabemos sobre moléculas, a menos que compreendamos os elos que as ligam entre si, e estes não são característicos de qual uma de suas partes constituintes [...]. Por conseguinte, é o foco combinado sobre sistemas sociais e suas ligações com a vida de pessoas isoladas que distingue a sociologia de outras disciplinas e proporciona um ponto de observação excepcional e poderoso, do qual podemos formular perguntas sobre a vida humana”.
5 Anthony Giddens (2009, p. XXXII): “O ‘materialismo histórico’, penso eu, é uma versão do evolucionismo [...] em pelo menos uma das muitas maneiras como esse discutido termo tem sido entendido. Se interpretado desse modo, o materialismo histórico manifesta mais geralmente muitas das limitações principais e secundárias das teorias evolucionistas, e tem de ser rejeitado pelas mesmas razões”. Ao estudar detidamente a história da sociologia, e também ao considerar os problemas da atualidade, indagamo-nos –juntamente com Anthony Giddens (2009, p. 415)– “Por que os que trabalham nas ciências sociais não podem esquecer seus ‘fundadores’, como os cientistas naturais fizeram?”. Sobre esse ponto, especificamente, Giddens (2009, p. 411) é claríssimo: “A ciência social está, ao que parece, cronicamente dilacerada por divergências e antagonismos, incapaz de esquecer seus ‘fundadores’, cujos escritos são considerados de importância permanente”.
6 Allan Johnson (1997, p. 147): “Historicamente, discutiu-se se a sociologia poderia ou deveria aspirar a ser CIÊNCIA como um modelo para conduzir pesquisas, sobretudo na medida em que o único meio para demonstrar relações de causa e efeito –O EXPERIMENTO– é difícil senão impossível para se usar com a maior parte dos problemas sociológicos. A sociologia não pode identificar leis análogas às leis da física, em parte porque a vida social é bastante complexa, mas também porque considerações éticas, entre outras, impossibilitam os tipos de condições controladas e de manipulações experimentais tão características das ciências físicas. A despeito disso, a sociologia é quase científica em seus compromissos com elementos básicos do método científico, especialmente aqueles relacionados à OBJETIVIDADE, a reunião sistemática da evidência, a REPLICAÇÃO dos resultados pesquisados e as normas que governam o trabalho científico”. “Aqueles que favorecem os métodos quantitativos como base principal do que torna a ciência social uma ‘ciência’”, aponta Giddens (1997, p. 388-399), “tendem a enfatizar a primazia chamada ‘análise macrossociológica”. Os que advogam métodos qualitativos como fundamento da pesquisa empírica nas ciências sociais, por outro lado, enfatizam [...] o caráter social, escorados no argumento de que a quantificação e o uso do método estatístico impõem à vida social uma fixidez que ela, de fato, não tem”.
7 Referimo-nos genericamente –é claro– ao conceito de rede social. Em relação a isso, Johnson (1997, p. 190) aponta: “Embora o termo rede social esteja em uso há muito tempo, tanto no sentido sociológico quanto popular, só na década de 1970 é que sociólogos desenvolveram esse conceito como peça central de uma perspectiva da vida social. A rede é simplesmente um conjunto de relações que ligam pessoas, posições sociais ou outras unidades de análise, como grupos e organizações. Ao focalizar a atenção em redes, os sociólogos podem fazer uma grande variedade de perguntas, desde a maneira como pessoas adquirem poder ao motivo por que organizações funcionam e como. De modo geral, o método de rede supõe que experiência, comportamento e resultados individuais dependem mais do ponto em que as pessoas estão localizadas nas várias redes do que de quem eles são como indivíduos”. Nesse ponto, especificamente, inclinamo-nos a pensar como Giddens, que rejeita a ênfase cega nessa única visão de rede, sem uma percepção clara das subjetividades das unidades e agentes sociais em ação intencional, que contrabalanceiem e venham suplementar as limitações destas formas funcionalistas de visão da realidade que as teorias das redes geralmente nos oferecem.
8 Está no Dicionário de Sociologia de Allan Johnson (1997, p. 213): “Sociedade é um tipo de sistema social que, como todos os sistemas sociais, distingue-se por suas características culturais, estruturais e demográficas/ecológicas. Especificamente, é um sistema definido por um território geográfico (que poderá ou não coincidir com as fronteiras de NAÇÕES-ESTADO), dentro do qual uma população compartilha de uma cultura e estilo de vida comuns, em condições de autonomia, independência e autossuficiência relativas”.
9 “O termo ‘sociologia’”, informa-nos Giddens (2009, p. 425), “foi inventado [cunhado] por [Auguste] Comte e, até tempos muito recentes, preservou em maior proporção uma forte conexão com o estilo de pensamento do qual ele foi um representante tão proeminente. [...] O que mudou, e está mudando, a sociologia é, sem dúvida, num considerável grau, o declínio da hegemonia de que gozaram outrora o objetivismo e o funcionalismo”. “Poderíamos dizer”, acrescenta Giddens (2009, p. 424), “que a sociologia tem suas origens na história moderna, concebida como análise das origens e impacto do capitalismo industrial no Ocidente”. Mas, por outro lado, é importante perceber que tais definições e tais fechamentos teóricos acabam por ignorar outros pensamentos e pensadores que, pretensamente, não se enquadram nesse recorte histórico-temporal. Um exemplo que nos traz Giddens é o de Maquiavel. Nas próprias palavras do autor (2009, p. 413), “a questão de saber se é justificado chamar Maquiavel de ‘cientista ‘social’ poderia ser discutida com base em que seus escritos precedem a era na qual se tornou sistematizada a reflexão sobre a natureza das instituições sociais. Suponhamos, porém, que examinemos o período mais recente, que compreende as décadas finais do século XVIII e a parte inicial do século XIX. Foi a época, poder-se-ia argumentar, em que começou a pesquisa empírica detalhada das questões sociais”. Conclusivamente, Giddens (2009, p. 400) sustenta em tom coloquial: “Presume-se, e eu presumo, que a crítica interna – os exames críticos a que os cientistas sociais submetem suas ideias e pretensas descobertas – é inerente ao que a ciência social é como esforço coletivo”.
10 “Os praticantes de uma disciplina”, aponta Giddens (1997, p. 337), “ao que parece, só se sentem seguros se puderem apontar uma nítida delimitação conceptual entre seus interesses e os dos outros”.
11 “Na teoria da estruturação”, escreve Giddens (1997, p. 191), “uma série de dualismos ou oposições fundamentais para outras escolas de pensamento social são reconceituados como dualidades. O dualismo ‘indivíduo’ e ‘sociedade’, em particular, é reconceituado como a dualidade agência e estrutura”.
12 Todavia, numa espécie de ponderação metacrítica, é importante não desprezarmos de forma alguma as vontades e intensões individuais dos agentes envolvidos nas lutas sociais históricas, já que são apenas elas –vontades e intensões dos agentes– que, na prática, podem interferir no mundo cotidiano, nas situações da vida ordinária e comum, mudando-a e melhorando-a se assim for necessário, pois é justamente aí nessas injunções unitárias que tudo acontece. Mesmo porque, existe uma estreita relação entre ação individual e poder. Giddens (2009, p. 17), acerca disso, indaga-nos: “Qual é a natureza da conexão lógica entre ação e poder? [E ele mesmo responde:] Embora as ramificações da questão sejam complexas, a relação básica envolvida pode ser facilmente apontada. Ser capaz de ‘atuar de outro modo’ significa ser capaz de intervir no mundo, ou abster-se de tal intervenção, com o efeito de influenciar um processo ou estado específico de coisas. Isso pressupõe que ser um agente é ser capaz de exibir (cronicamente, no fluxo da vida cotidiana) uma gama de poderes causais, incluindo o de influenciar os manifestados por outros. A ação depende da capacidade do indivíduo de ‘criar uma diferença’ em relação ao estado de coisas ou curso de eventos preexistente. Um agente deixa de o ser se perde a capacidade para ‘criar uma diferença’, isto é, para exercer alguma espécie de poder”. “O poder em sistemas sociais que desfrutam de certa continuidade no tempo e no espaço”, sustenta Giddens (2009, p. 18-19), “pressupõe relações regularizadas de autonomia e dependência entre atores ou coletividades em contextos de interação social. Mas todas as formas de dependência oferecem alguns recursos por meio dos quais aqueles que são subordinados podem influenciar as atividades de seus superiores. É a isso que chamo de dialética do controle em sistemas sociais”. Conclusivamente, como lemos em Anthony Giddens (2009, p. 422), “a mudança social é feita por pessoas que fazem coisas novas”. Mas, “a vida social”, acrescenta Giddens (2009, p. 404-405) em tom de alerta, “em muitos aspectos, não é um produto intencional de seus atores, embora a conduta no dia-a-dia seja cronicamente levada a cabo de modo deliberado”.
13 Todo ismo pressupõe inexoravelmente algum grau de determinismo e reducionismo, no sentido de que nenhuma teoria ou corrente de pensamento pode abarcar tudo que existe no campo da vida social num só ismo, sob pena de relegar todo o ‘resto’ à desimportância sociológica, e isso simplesmente não faz o menor sentido. Johnson (1997, p. 71) nos informa que, “em termos gerais, determinismo é um modo de pensar que supõe que tudo é, de modo previsível, causado por alguma coisa. Mais especificamente, determinismo descreve qualquer teoria que explique o mundo em termos de alguns fatores estreitamente definidos”. Johnson (1997, p. 72) acrescenta que “a teoria marxista tem sido criticada como sendo uma forma de determinismo econômico (conhecida também como economismo), ao argumentar que as forças e relações de produção que definem os sistemas econômicos determinam as condições sociais, da religião e literatura ao governo e à vida familiar. Da perspectiva sociológica, o pensamento determinista/reducionista é falho por sua própria natureza, uma vez que deixa de compreender a complexidade inerente à vida social, que a sociologia tenta abranger e descrever”.
14 “Pode haver”, escreve Giddens (2009, p. 395), “características básicas da organização institucional da sociedade (incluindo a ideologia, mas não limitadas a ela) que restrinjam ou distorçam o que consideram ser conhecimento”. “Na análise institucional”, informa-nos Giddens (1997, p. 339), “as propriedades estruturais são tratadas como características cronicamente reproduzidas de sistemas sociais. Na análise da conduta estratégica, o foco incide sobre os modos como os atores sociais se apoiam nas propriedades estruturais para a constituição de relações sociais”. Mas Giddens (1997, p. 336) faz um alerta importante acerca das análises que põem mais ênfase nas instituições: “Aqueles que consideram que a análise institucional compreende o campo da sociologia in toto confundem um procedimento metodológico com uma realidade ontológica”.
15 “O domínio básico de estudo das ciências sociais, de cordo com a teoria da estruturação”, sustenta Anthony Giddens (2009, p. 2), “não é a experiência do ator individual nem a existência de qualquer forma de totalidade social, mas as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo.” Segundo Giddens (2009, p. 3), as relações e as atividades dos seres humanos são “recursivas”, ou seja, elas são – de acordo com isso – “criadas por atores sociais mas continuamente recriadas por eles através dos próprios meios pelos quais eles se expressam como atores. Em suas atividades, e através destas, os agentes reproduzem as condições que tornam possíveis essas atividades”. “Os atores”, continua Giddens (2009, p. 6), “não só controlam e regulam continuamente o fluxo de suas atividades e esperam que outros façam o mesmo por sua própria conta, mas também monitoram rotineiramente aspectos, sociais e físicos. [...] O que agentes competentes esperam dos outros – e esse é o principal critério de competência aplicado na conduta cotidiana – é que os atores sejam habitualmente capazes de explicar a maior parte do que fazem, se indagados”. Como frisa muito bem Giddens (2009, p. 23), “as ‘regras’, tal como as entendo, certamente incidem sobre numerosos aspectos da prática rotineira, mas uma prática rotineira não é uma regra”. “As regras e os recursos esboçados na produção e na reprodução da ação social são, ao mesmo tempo”, sustenta Giddens (2009, p. 22), “os meios de reprodução do sistema (a dualidade de estrutura)”. Lembrando que, como aponta o mesmo autor (2009, p. 22), “as regras relacionam-se com a constituição de significado e, por outro lado, com o sancionamento dos modos de conduta social”.
16 “Em pesquisa sociológicas”, conforme lemos no Dicionário de sociologia: Guia prático da linguagem sociológica de Allan Johnson (1997, p. 147), “metodologia refere-se às práticas e técnicas usadas para reunir, processar, manipular e interpretar informações que podem ser usadas para testar ideias e teorias sobre a vida social”.
17 Nas palavras do próprio Giddens (2009, p. 3), “ser um ser humano é ser um agente intencional, que tem razões para suas atividades e também está apto, se solicitado, a elaborar discursivamente essas razões. [...] É útil falar de reflexividade como algo assentado na monitoração que os seres humanos exibem, esperando o mesmo dos outros”. Existe, segundo Giddens (1997, p. 70), “um sentido de confiança na continuidade no mundo objetivo e no tecido da atividade social depende de certas conexões especificáveis entre agente o agente individual e os contextos sociais através dos quais esse agente se movimenta no decorrer da vida cotidiana”. “Os seres humanos fazem sua história no conhecimento dessa história”, aponta Giddens (1997, p. 278), “isto é, como seres reflexivos que cognitivamente se apropriam do tempo em vez de meramente o ‘viver’”.
18 Entendendo “história” como o próprio Giddens (2009, p. 427) entende para conceber sua teoria da estruturação, ou seja, como “uma estruturação de eventos no tempo e no espaço mediante a iteração contínua de agência e estrutura, a interconexão da natureza mundana da vida diária com as formas institucionais que se estendem sobre os imensos períodos de tempo e de espaço”. “Através dos fragmentos do passado que sobreviveram”, aponta Giddens (2009, p. 419), “o historiador tenta recuperar aqueles aspectos do passado que se esfumaram no tempo”.
19 “As propriedades estruturais mais profundamente embutidas, implicadas na reprodução de totalidades sociais”, informa-nos Giddens (2009, p. 20), “chamo de princípios estruturais. Aquelas práticas que possuem a maior extensão espaço-temporal, dentro de tais totalidades, podem ser designadas como instituições.”
20 Nas palavras do próprio Giddens (2009, p. 407), “toda ação ocorre em contextos que, para qualquer ator, incluem muitos elementos que este não ajudou a produzir nem possui qualquer controle significativo sobre eles”.
21 “A integração de sistema refere-se”, informa-nos Giddens (1997, p. 33), “a conexões com aqueles que estão fisicamente ausentes no tempo ou no espaço. [...] Os atores apoiam-se nas modalidades da estruturação na reprodução de sistemas de interação, reconstituindo, justamente por isso, suas propriedades estruturais”. Giddens (1997, p. 43): “As relações com aqueles que estão fisicamente ausentes, como eu disse, envolvem mecanismos sociais distintos do que está envolvido em contextos de copresença”. Giddens (1997, p. 200) esclarece que a “longue durée de instituições tanto precede quanto ultrapassa as vidas dos indivíduos nascidos numa determinada sociedade”. Giddens (1997, p. 201) acrescenta se referindo a Durkheim: “As totalidades sociais, sublinha ele, não só preexistem e sobrevivem aos indivíduos que as produzem em suas atividades, mas também se expandem no espaço e no tempo para além de qualquer agente considerado singularmente”.
22 Como consta do glossário de terminologia da teoria da estruturação do livro A constituição da sociedade em verbete homônimo, em Giddens (1997, p. 440), consciência prática é tudo aquilo que “os atores sabem (creem) acerca das condições sociais, incluindo especialmente as de sua própria ação, mas não podem expressar discursivamente; nenhuma barreira repressiva, entretanto, protege a consciência prática, como acontece com o inconsciente”. “A noção de consciência prática”, afirma Giddens (1997, p. 7), “é fundamental para a teoria da estruturação. É aquela característica o agente ou sujeito humano para a qual o estruturalismo tem sido particularmente cego”. “Todo ator social competente [...] é ipso facto um teórico social no nível da consciência discursiva e um ‘especialista metodológico’ nos níveis de consciência prática e discursiva”. Diferentemente do conceito de consciência prática, encontra-se – segundo Giddens (1997, p. 443) – o conceito de racionalização da ação, que é justamente “a capacidade que atores competentes têm de se ‘manterem em contato’ com as bases do que fazem, de tal modo que, se interrogados por outros, podem fornecer razões para suas atividades”.
23 “As crenças ditadas pelo senso comum”, informa-nos Giddens (2009, p. 396), “tal como foram incorporadas ao uso da linguagem e à ação cotidianos, não podem ser tratadas como meros impedimento para a caracterização válida ou verídica da vida social. Pois não podemos absolutamente descrever a atividade social sem conhecer o que seus atores constituintes sabem, tanto discursivamente quanto tacitamente. [...] O problema consiste em que, tendo chegado a essa conclusão, aqueles que advogam formas interpretáveis da ciência social acham difícil ou impossível manter aquela agudeza crítica na qual o tipo oposto de tradição corretamente insistiu em justapor ciência social e senso comum. [...] As crenças, táticas e discursivas, têm de ser tratadas como ‘conhecimento’ quando o observador está atuando no plano metodológico de caracterização da ação. O conhecimento mútuo, encarado como o modo necessário de obter acesso ao ‘objeto de estudo’ da ciência social, não é corrigível à luz de suas descobertas; pelo contrário, é a condição para se estar apto a apresentar ‘descobertas’”. Além disso, acrescenta Giddens (2009, p. 397), “a introdução da terminologia científica social pode (mas não necessariamente) pôs em dúvida crenças discursivamente formuladas (ou, quando ligadas num conjunto, ‘teorias em uso’) que os atores sustentam. [...] O que de uma perspectiva é um ‘movimento de libertação’ poderá ser uma ‘organização terrorista’ de uma outra. A escolha de um termo em vez de outro implica, é claro, uma postura definida por parte do observador”. Mesmo porque, escreve Anthony Giddens (2009, p. 25), “como atores sociais, todos os seres humanos são altamente ‘instruídos’ no que diz respeito ao conhecimento que possuem e aplicam na produção e reprodução de encontros sociais cotidianos; o grande volume desse conhecimento é, em sua maioria, de caráter mais prático do que teórico”. Como escreve Giddens (1997, p. 30), “o conhecimento de convenções sociais, de si mesmo e de outros seres humanos, pressuposto na capacidade de ‘prosseguir’ na diversidade de contextos da vida social, é detalhado e impressionante”. Num sentido mais amplo e significativo, como é possível compreender juntamente com Giddens (2009, p. 417), “as ciências sociais apoiam-se necessariamente em muito do que já é conhecido dos membros das sociedades que elas investigam, e fornecem teorias, conceitos e conclusões que serão reintroduzidos no mundo que descrevem”.
24 “As ciências sociais não podem fornecer conhecimento (relevante) que possa ser ‘contido’, pronto para estimular intervenções sociais apropriadas quando necessário”.
25 “Na recusa deliberada de Goffman de se preocupar com questões de organização e história social em grande escala”, informa-nos Giddens (1997, p. 164), “parece despontar a ideia de que a realidade essencial da vida social será encontrada no que ele designava às vezes por microssociologia”.
26 “Um modo muito mais interessante de abordar as obras de Goffman”, escreve Giddens (1997, p. 80), “é trata-las como estando empenhadas em mapear detalhadamente as intersecções de presença e ausência na interação”. “Penso que seus escritos”, acrescenta Giddens (1997, p. 81), “revelam características de copresença encontradas em todas as sociedades [e é aqui que dizemos o mesmo em relação á teoria da estruturação de Giddens, ou seja, que ela se aplica a “todas as sociedades” e não apenas às contemporâneas, assunto que tocaremos mais adiante], por muito pertinentes que esses mesmos escritos possam ser, de fato, para a identificação de novas características na era contemporânea. [...] Suas análises de encontros pressupõem a existência de agentes motivados, em vez de investigar as origens da motivação humana”. Nós, por nosso turno, discordamos desse tipo de pensamento binário que o próprio Giddens também tenta transcender, e acreditamos que esse “em vez” poderia tranquilamente ser substituído por um “também”, conforme o próprio Giddens nos ensina através do exemplo a fazer, já que a motivação dos atores provavelmente se originou nas necessidades e ações mais básicas e basilares destes agentes biológicos, e que parte das respostas pode estar também nas origens da motivação humana, no sentido de que uma das motivações mais seminais dos organismos biológicos – quiçá a mais –, é justamente conseguir permanecer no tempo e no espaço, poder se alimentar, tentar não tornar-se alimento, e poder cumprir seu ciclo vital acasalando, levando assim adiante sua mensagem genética para as futuras gerações, e são as unidades biológicas as protagonistas da própria bioevolução, pois são elas que – com sorte – vão poder levar adiante novos comportamentos e aptidões, sejam desenvolvidas ou apreendidas. Nesse sentido, não vemos razão para excluir a história bioevolutiva dos Sapiens, que se confunde com a história dos agentes motivados através dos tempos imemoriais, e nós apresentaremos as nossas razões na sessão final desse trabalho.
27 Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2014, 20ª edição, 4ª reimpressão, publicado pela primeira vez em 1959, editado por Doubleday Anchor Books.
28 Encontra-se em Giddens (1997, p. 357). Ainda sobre isso, Giddens (1997, p. 388) frisa: “Somente com muitas reservas a principal unidade de análise social pode ser chamada de ‘sociedade’”
29 Nas palavras do próprio Goffman (2014, p. 72): “Quando descobrimos que alguém com quem lidamos é um impostor, um rematado velhaco, estamos descobrindo que ele não tinha o direito de representar o papel que desempenhava e não era um ocupante credenciado da importante posição social”.
30 “Goffman dá o seguinte exemplo”, informa-nos Giddens (1997, p. 86): “Para fazer um exame médico, ou para servir de modelo numa aula de arte, o indivíduo não costuma se desnudar ou tornar a se vestir na presença dos outros. O ato de se despir e de vestir, em particular, permite que o corpo seja subitamente exposto e escondido, marcando assim as fronteiras do episódio e transmitindo a mensagem de que as ações estão claramente separadas de conotações sexuais ou outras que, de outro modo, poderiam ser-lhes atribuídas”.
31 Goffman (2014, p. 49) aponta pertinentemente: “Talvez a peça mais importante do equipamento de sinais associado à classe social consista nos símbolos do status, mediante os quais se exprime a riqueza material”. Goffman (2014, p. 48) também alerta que, “em muitas sociedades estratificadas existe a idealização dos estratos superiores e uma certa aspiração, por parte dos que ocupam posições inferiores, de ascender às mais elevadas. Deve-se ter cuidado de compreender que isto implica não apenas no desejo de uma posição de prestígio, mas também o desejo de uma posição junto ao centro sagrado dos valores comuns da sociedade”. Por outro lado, Goffman (2014, p. 88) explica que “uma condição, uma posição ou lugar social não são coisas materiais que são possuídas e, em seguida, exibidas; são um modelo de conduta apropriada, coerente, adequada e bem-articulada. Representando com facilidade ou falta de jeito, com consciência ou não, com malícia ou boa-fé, nem por isso deixa de ser algo que deva ser encenado e retratado e que precise ser realizado”.
32 “É um trabalho cooperativo”, informa-nos Giddens (1997, p. 87) citando Goffman, “no qual os participantes no envolvimento face a face e os circunstantes –frequentemente envolvidos, é claro, em seus próprios compromissos com os grupos– mantêm uma espécie de ‘inatenção cortês’ em relação uns aos outros. [...] Espera-se geralmente dos circunstantes que não só não explorem uma situação de proximidade de presença, por meio da qual poderiam acompanhar o que está acontecendo em outros envolvimentos face a face, mas que também demonstrem ativamente a inatenção. Isso pode ser problemático. Pois se a inatenção for excessivamente estudada o efeito poderá sugerir que o indivíduo estará, de fato, bisbilhotando”. “O impressionante nas habilidades de interação exibidas pelos atores na produção e reprodução de encontros”, acrescenta Giddens (1997, p. 88), “é seu embasamento na consciência prática”. Quando alguém exclama “opa!” ou “upa!”, informa-nos Giddens (1997, p. 95), “na verdade, a exclamação mostra a outros que a ocorrência em questão é um mero acidente, pelo qual o indivíduo não pode ser responsabilizado. Ela é usada pelo agente para indicar que o lapso é tão-somente isso, um evento momentâneo e contingente, e não a manifestação de uma incompetência mais generalizada ou de algum intento opaco”. O próprio Goffman (2014, p. 65) nos alerta para o fato de que “um ator pode mostrar acidentalmente incapacidade, impropriedade ou desrespeito por perder momentaneamente o controle muscular. Pode tropeçar, claudicar, cair; pode arrotar, bocejar, cometer um lapsus linguae, coçar-se ou ter flatulência; pode, acidentalmente, esbarrar em outro participante”. Lembrando –juntamente com Goffman (2014, p. 98)– que “o objetivo de um ator é sustentar uma particular definição da situação, representando isto, por assim dizer, sua afirmação do que seja a realidade”. Erving Goffman (2014, p. 100) também aponta que, quando vários atores que integram em uma equipe e produzem “uma discordância declarada diante do público [pessoas que não fazem parte da equipe] produz, como se diz, uma nota dissonante. Poder-se-ia dizer que as notas dissonantes literais são evitadas exatamente pelas mesmas razões que são evitadas as notas dissonantes figuradas; em ambos os casos trata-se de manter uma definição da situação”. A família que recebe visitas é –segundo Goffman (2014, p. 104)– uma forma de expressão desse tipo de trabalho em equipe, e “as crianças da casa são geralmente excluídas das representações feitas para as visitas, porque frequentemente não se pode confiar em que elas se ‘comportem’, isto é, se abstenham de agir de um modo incompatível com a impressão que está sendo promovida. Igualmente, os indivíduos que se sabe ficarem embriagados quando há bebida disponível e que se tornam falastrões ou ‘difíceis’ quando isso ocorre constituem uma representação arriscada do mesmo modo que os que se mantêm sóbrios, mas são imprudentemente indiscretos, e os que se recusam a ‘se compenetrar’ da ocasião e a ajudar a sustentar a impressão que as visitas tacitamente procurem dar ao dono da casa”.
33 A partir do trabalho e também das ideias de Erving Goffman, Anthony Giddens (1997, p. 98) esclarece: “Uma posição social pode ser considerada uma ‘identidade social’ portadora de uma certa gama (um tanto difusamente especificada) de prerrogativas e obrigações que o ator, ao qual é conferida essa identidade (ou a quem ‘incumbe’ essa posição), pode ativar ou executar: essas prerrogativas e obrigações constituem as prescrições de papel associadas a essa posição”. “As regras aplicadas reflexivamente em circunstâncias de copresença nunca são limitadas em suas implicações a encontros específicos, mas servem à reprodução dos padrões de encontros através do tempo de do espaço. As regras da linguagem, da estruturação primária e secundária, da conduta da interação interpessoal, aplicam-se todas a vastos setores da vida social, embora não possam ser interpretadas como necessariamente coextensivas com qualquer ‘sociedade’ dada”. Nas palavras do próprio Goffman (2014, p. 25), “a sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada”. Goffman (2014, p. 48) acrescenta que, “quando um indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo como um todo”.
34 Nas palavras do próprio Giddens (1997, p. 31): “A estrutura não tem existência independente do conhecimento que os agentes possuem a respeito do que fazem em sua atividade cotidiana. Os agentes humanos sempre sabem o que estão fazendo no nível da consciência discursiva, sob alguma forma de descrição”.
35 Sobre isso, Giddens (1997, p. 132) escreve: “Os padrões típicos de movimento de indivíduos [...] podem ser representados como a repetição de atividades de rotina através dos dias ou de períodos mais longos de tempo-espaço. [...] Os dinâmicos ‘mapas espaçotemporais’ de Hägerstrand são de interesse definitivo e fornecem uma forma gráfica de relevância para situações muito além daqueles para que foram usadas até agora”.
36 Erving Goffman (2014, p. 58-59) resume essa temática de maneira brilhante, denominando o processo como retórica do treinamento: “Os sindicatos, universidades, associações comerciais e outras corporações que outorgam permissões exigem dos profissionais que absorvam uma margem mística e um período de treinamento, em parte para manter o monopólio, mas em parte para alimentar a impressão de que o profissional licenciado é alguém que foi reconstituído pela experiência da aprendizagem e acha-se agora colocado à parte dos outros homens”.
37 “A interpretação da consciência prática é um elemento necessário”, aponta Giddens (1997, p. 387), “implicitamente entendido ou explicitamente enunciado, das características mais amplas da conduta social”.
38 Nas palavras do próprio Anthony Giddens (1997, p. 159): “Como todas as formas de organização disciplinar, elas [escolas] funcionam dentro de fronteiras fechadas, estando seus limites físicos claramente separados da interação cotidiana que se desenrola do lado de fora. Uma escola é um ‘recipiente’, que gera poder disciplinar”.
39 “As várias discussões feitas por Foucault sobre as origens do poder disciplinar”, aponta Giddens (1997, p. 171), “demonstram uma persistente preocupação com a distribuição temporal e espacial. Segundo ele, o poder disciplinar tem como foco a manipulação do corpo, considerado essencialmente como uma máquina que pode ser primorosamente afinada. [...] As novas formas de disciplina são precisamente talhadas na medida dos movimentos, gestos e atitudes do corpo individual”. “A compartimentação do espaço ocorreu [...] nas fábricas do final do século XVIII”, informa-nos Giddens (1997, p. 173), “neste caso, a tendência foi também a de distribuir os indivíduos num espaço demarcado, mas essa distribuição tinha de ser dirigida para a coordenação de maquinaria. Assim, a disposição dos corpos no espaço devia corresponder às exigências técnicas da produção. [...] As doutrinas de Frederick Taylor não são muito mais do que uma formulação tardia do poder disciplinar que acompanhou a ascensão da indústria em grande escala há mais de um século”. Nesse ponto, gostaríamos de realizar alguns aportes teóricos que consideramos importantes, que dizem respeito às nossas já decanas pesquisas sobre inteligência artificial (IA) e sociedade, já que com a IA essa relação de submissão ao aparato tecnocientífico só se agrava e recrudesce, onde a automação, automatização e robotização, acabam por circunscrever o ser humano a um papel menor e muito mais secundário e submisso em relação às máquinas, aos sistemas de máquinas, e, principalmente, em relação aos sistemas que controlam os demais sistemas cibernético-informacionais de máquinas, sistemas estes que movem a própria maquinaria desse parque humano-pós-humano em que vivemos hoje, e a IA nesse contexto desempenha um papel absolutamente central, pois agrava e potencializa a referida submissão e subjugação do ser em relação ao sistema. Em um contexto assim, o ser humano como força bruta de trabalho, resume-se a apenas mais uma peça da inominável engrenagem da produção industrial, muitas vezes dispensável, substituível ou mesmo obsoleta. Existe farta literatura sobre isso, mas nós nos resumiremos a citar o filósofo italiano Umberto Galimberti em entrevista concedida a nós, e publicada na Revista Filosofia, Ciência e Vida, e também em seu livro O homem na idade da técnica.
40 Nesse contexto, Anthony Giddens (1997, p. 174), em sua sabedoria pluridisciplinar, dá voz a Michel Foucault, e ninguém melhor do que ele para explicar que, “ao organizar ‘células’, ‘lugares’ e ‘filas’, as disciplinas criam espaços complexos que são simultaneamente arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que fornecem posições fixas e permitem a circulação; criam segmentos individuais e estabelecem ligações operacionais; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência de indivíduos, mas também uma melhor economia de tempo e gesto”.
41 “As ‘instituições totais’”, informa-nos Giddens (1997, p. 183), “envolvem geralmente o que Goffman chama de ‘morte civil’ – a perda do direito de voto e de envolvimento em outras formas de participação política, de deixar dinheiro em testamento, preencher cheques, contestar uma ação de divórcio ou adotar um filho. [...] As ‘instituições totais’ destacam-se neste aspecto como diferentes dos percursos da vida cotidiana dos que estão do lado de fora. Aquilo que Goffman chama de ‘territórios do self’ são ali violados de um modo que não se aplica aos que vivem fora de seus muros”. “As formas de controle que os reclusos procuram exercer sobre suas vidas no dia-a-dia”, aponta Giddens (1997, p. 185) apoiando-se em Goffman, “tendem a concentrar-se sobretudo na proteção contra a degradação do self”, ou, mais simplesmente, do eu, o que significa dizer que os laços sociais recíprocos que os sujeitos usavam como sustentáculos de sua própria existência singular em meio à trama social se desintegraram, romperam-se, ou mantiveram-se num nível mínimo instintivo de sobrevivência, no qual a noção de eu praticamente desaparece.
42 “A tendência desses autores [Durkheim, Foucault]”, informa-nos Giddens (1997, p. 205), “foi de enxergar na coerção estrutural uma fonte de causação mais ou menos equivalente à operação de forças causais impessoais na natureza. O raio de ‘ação livre’ dos agentes é restringido, por assim dizer, por forças externas que fixam limites estritos ao que eles podem realizar”, erro crasso que –acreditamos– outras formas e escolas de pensamento também cometeram, principalmente quando consideram as relações produtivas e econômicas e as próprias posições dos agentes como estruturas absolutamente rígidas, redutivas e causalmente determináveis, deixando pouco ou nada aos agentes intencionais que produzem e reproduzem a própria estruturação, e por isso acabam por se rejeitadas por não se aplicarem mais ao contexto sociológico que se quer estudar atualmente. “A coerção estrutural”, sustenta Giddens (1997, p. 208), “é mais bem descrita como a fixação de limites à gama de opções a que um ator, ou pluralidade de atores, tem acesso numa dada circunstância ou tipo de circunstância”.
43 A teoria da complexidade pode ser compreendida...
44 Em Inteligência artificial e bioevolução: Reflexões epistemológicas sobre organismo e máquinas, Alexandre Quaresma (1997, p. 297): “A emergência do mais complexo advém sempre do mais simples, ou do mais simples e menos complexo numa superposição de complexidades que se apoiam umas nas outras. Nas palavras de Edgar Morin ‘as qualidades emergentes globais das organizações de ‘baixo’ tornam-se as qualidades de base elementares para a edificação das unidades complexas do nível superior, as quais produzirão novas emergências que, por sua vez, se tornarão ‘elementos’ do novo nível superior, e assim por diante’”.
45 Nas palavras do próprio Giddens (1997, p. 202): “Os sistemas sociais possuem propriedades estruturais que não podem ser descritas em termos de conceitos pertinentes à consciência dos agentes”.
46 “É justamente nessas tendências da argumentação de Marx”, informa-nos Giddens (1997, p. 226), “que se pode ver donde Althusser deriva a corroboração textual para a visão de que os agentes humanos nada mais são do que ‘suportes’ para os modos de produção”.
47 “A contradição”, aponta Giddens (1997, p. 374), “é uma espécie de perversidade estrutural e é provável que produza constantemente consequências perversas nos modos em que está exposta na conduta de atores sociais”. “Marx sustentou”, informa-nos Giddens (1997, p. 375) criticamente, “que quando os membros da classe trabalhadora se perceberem crescentemente da natureza contraditória da produção capitalista, eles se mobilizarão para mudá-la. Ele não parece ter dado muito peso à possibilidade de grupos dominantes na sociedade adquirirem uma compreensão do sistema suficientemente refinada para estabilizá-lo. O papel ascendente do Estado pode ser visto precisamente nesses termos”.
48 “Por ‘contradição existencial’”, define Giddens (1997, p. 227), “refiro-me a um aspecto elementar da existência humana em relação com a natureza ou com o mundo material. [...] Os seres humanos emergem do ‘nada’ da natureza inorgânica e desaparecem de volta a esse estado estranho do inorgânico”. Aqui, nesse ponto, faz-se necessária uma advertência teórica importante, que de diversas maneiras diz respeito à principal crítica construtiva que fazemos à teoria da estruturação, crítica que será apresentada nas considerações finais desse trabalho, mas que grosso modo poderia ser resumida da seguinte forma: é um equívoco raciocinar assim, trabalhando com termos como “inorgânico” para se referir à vida, pois os seres humanos não emergem do nada inorgânico, nem voltam para o nada inorgânico, no sentido biológico do termo. A vida sempre nasce da vida, geralmente de suas sementes, ovos e demais formas de autopoiese, em seres inseridos em cadeias tróficas vivas, oriundas das interações orgânicas vivas, que faz parte de um sistema biológico e dinâmico maior, que são as cadeias tróficas e os biomas, e os próprios seres vivos que atuam nesses biomas e cadeias tróficas –dos quais os humanos também fazem parte– também guardam laços inquebrantáveis com todo o processo bioevolutivo pregresso que ocorreu no planeta, e esse processo tem uma história universal comum, da qual os humanos não podem se excluir. No caso especifico humano, o espermatozoide vivo sai de um corpo também vivo, passa a outro corpo igualmente vivo, e vai encontrar em seu interior um óvulo que também é absolutamente vivo, e toda a existência viva não foge essa regra. A única hipótese para compreendermos essa expressão de Giddens, seria considerar apenas os aspectos ontofenomênicos e existenciais da contradição entre vida e morte, de um corpo que se constitui em escala biomolecular, e depois se desintegra, tudo isso filosoficamente falando, pois biologicamente, não há aqui mistério algum, já que o próprio corpo que se desintegra na morte traz outras vidas dentro de si, e ele mesmo se tornará alimento para uma infinidade de outros seres vivos ao perder sua integralidade. O orgânico surge sim do inorgânico, mas isso aconteceu num outro contexto e tempo, e não no sentido que Giddens quis empregar.
49 “Permita-me afirmar uma vez mais”, escreve Giddens (1997, p. 209), “o teorema segundo o qual todas as propriedades estruturais dos sistemas sociais são tanto facilitadoras quanto coercivas”.
50 “A força de trabalho”, aponta Giddens (1997, p. 221), “é uma mercadoria que tem, entre outras características, a de ser uma fonte da criação de valor. O contrato de trabalho capitalista está inerentemente envolvido na transformação da moeda num equivalente da força de trabalho. ‘Essa relação não tem uma base natural, e também sua base social não é comum a todos os períodos históricos. É claramente o resultado de um desenvolvimento histórico passado, o produto de muitas revoluções econômicas, da extinção de toda uma série de formas mais antigas de produção social”.
51 Citando Marx, Giddens (1997, p. 223) sustenta: “A forma final é [...] ‘um mecanismo produtivo cujas peças são seres humanos’”. “O ‘trabalhador encarregado do detalhe’”, continua Giddens (1997, p. 223-224) citando Marx, “executa um número circunscrito de operações repetitivas que podem ser coordenadas com os movimentos de processos mecanizados de produção”. “Existem certamente”, aponta Giddens (1997, p. 357), “fortes inclinações funcionalistas na formulação de Marx de alguns dos argumentos básicos em sua descrição do desenvolvimento capitalista”.
52 Giddens (1997, p. 235): “É um erro supor que a tradição, mesmo na mais fria das culturas frias, seja inteiramente refratária à mudança ou à diversificação da conduta. A caracterização que Shils faz da tradição é provavelmente muito apropriada: ele a vê como ‘o movimento de gotas de chuva numa vidraça. (...) uma corrente ondulatória de água, deslizando obliquamente vidraça abaixo, entra em contato com outra corrente que se desloca num ângulo diferente. Fundem-se, por breves momentos, numa única corrente, que se decompõe em duas outras, cada qual podendo dividir-se de novo, se a vidraça for suficientemente grande e a chuva bastante intensa”.
53 “Os movimentos sociais podem ser conceptualmente diferenciados dos movimentos populacionais, migrações et.”, aponta Giddens (1997, p. 240), “precisamente porque supõe um alto grau de autorregulação reflexiva. Os movimentos sociais podem ser convincentemente definidos como ‘empreendimentos coletivos para estabelecer uma nova ordem de vida’. Diferentemente das organizações, os movimentos sociais não operam, de modo característico, dentro de locais fixos, e o posicionamento dentro deles não possui a clareza de definição associada a ‘papéis’”.
54 “O que quer que a ‘História’ seja, por certo ela não é primordialmente”, sustenta Giddens (1997, p. 302) criticando duramente Marx, “‘a história das lutas de classes’, e da dominação de classe, mesmo em ‘última instância’. Um problema mais fundamental, entretanto, é o conceito de poder pressuposto, embora raramente receba expressão direta, nos escritos de Marx. [...] O poder não está necessariamente vinculado a conflito no sentido quer da divisão de interesses quanto da luta ativa, e não é intrinsicamente opressivo”. “Pois, tal como o marxismo”, acrescenta Giddens (1997, p. 305), “ainda somos prisioneiros da era vitoriana, na medida em que, antes de mais nada, pensamos na transformação do mundo material como força motivadora genérica da história”.
55 “O poder é”, informa-nos Giddens (1997, p. 302-303) pragmaticamente, “a capacidade de obter resultados; se estes se encontram ou não ligados a interesses puramente secionais nada tem a ver com sua definição. O poder não é, como tal, um obstáculo à liberdade ou à emancipação, mas seu próprio veículo – embora seja uma insensatez, obviamente, ignorar suas propriedades coercivas. A existência de poder pressupõe estruturas de dominação por meio das quais o poder que ‘flui suavemente’ em processos de reprodução social (e é, por assim dizer, ‘invisível’) opera”.
56 Nas palavras do próprio Giddens (1997, p. 384): “As ideias incorporadas à teoria da estruturação permitem, do modo que tentei demonstrar, a realização de várias críticas e correções muito básicas ao trabalho de pesquisa analisado”.
57 “Alguns filósofos”, explica-nos Giddens (1997, p. 35), “tentaram derivar teorias globais de significado ou a partir da intenção comunicativa; outros, em contrapartida, supuseram que esta última é, na melhor das hipóteses, marginal à constituição das qualidades significativas da interação, sendo ‘significado’ regido pela ordenação estrutural de sistemas de signos [lógica semiótica]. Na teoria da estruturação, porém, ambos os conceitos são considerados de interesse e importância equivalentes, aspectos mais de uma dualidade do que de um dualismo mutuamente exclusivo”.
58 “A vida cotidiana tem uma duração [ciclo vital]”, informa-nos Anthony Giddens (1997, p. 41), “um fluxo, mas não leva a parte nenhuma [?]; o próprio adjetivo ‘cotidiano’ e seus sinônimos indicam que o tempo, neste caso, é constituído apenas em repetição [?]. A vida do indivíduo, em contraste, é não só finita mas irreversível, ‘ser para a morte’ (Lowell). O tempo, neste caso, é o tempo do corpo, uma fronteira de presença muito diferente da evaporação do tempo-espaço inerente à duração da atividade cotidiana. Nossas vidas ‘passam’ em tempo irreversível com a passagem da vida do organismo”.
59 Giddens (1997, p. 351): “Toda interação social se expressa, em algum ponto, nas (e através das) contextualidades da presença corporal”.
60 “Os conceitos da teoria da estruturação”, sustenta Giddens (1997, p. 385-386), “como no caso de qualquer perspectiva teórica concorrente, devem ser considerados, para muitos fins de pesquisa, nada mais do que recursos sensibilizadores. Quer dizer, eles podem ser úteis para se refletir sobre problemas de pesquisa e para a interpretação dos resultados de estudos. Mas supor que estar teoricamente informado –obrigação de todos os que trabalham, em maior ou menor grau, na esfera das ciências sociais– significa sempre operar com uma porção de conceitos abstratos é uma doutrina tão perniciosa quanto a que sugere que podemos passar muito bem sem usar conceitos de qualquer espécie. [Mesmo porque,] o trabalho de pesquisa é empreendido para tentar elucidar muitas e diferentes questões, de acordo com a natureza dos problemas que o investigador se propõe esclarecer”.
61 Referimo-nos aos mais comuns e famigerados ismos, que respectivamente nominaremos aqui, ainda que a contragosto: utilitarismo; mecanicismo e funcionalismo.
62 “Há leis universais nas ciências sociais? Se não há”, sustenta Giddens (2009, p. 406-407), “então por que há tantos adeptos da sociologia estrutural que colocaram tipicamente todos os seus trunfos nessa explicação? A resposta evidente à primeira pergunta é não. Na ciência natural ou, pelo menos, em algumas de suas principais áreas, há muitos exemplos de leis que parecem obedecer ao tipo de lei universal. Na ciência social – e eu incluiria tanto a economia quanto a sociologia nesse julgamento – não há um só candidato que possa ser apresentado de forma indiscutível como exemplo dessa lei no domínio da conduta social humana. [...] Teremos de rever a natureza das leis em ciência social. O fato de nela não existirem leis universais conhecidas não é apenas uma casualidade. Se é correto dizer, conforme argumentei, que os mecanismos causais nas generalizações científicas dependem das razões dos atores, no contexto de uma ‘trama’ de consequências premeditadas e impremeditadas de ação, podemos facilmente perceber por que tais generalizações não têm uma forma universal. [...] A racionalização da ação está causalmente implicada, de maneira crônica, na continuação das ações do dia-a-dia. Por outras palavras, ela é um elemento importante na gama de poderes causais que um indivíduo, enquanto agente social, apresenta”.
63 “A socialização”, aponta Goffman (2014, p. 86), “pode não envolver tanto uma aprendizagem dos múltiplos detalhes específicos de um único papel concreto; frequentemente não haveria tempo ou energia suficiente para isto. O que parece ser exigido do indivíduo é que aprenda um número suficiente de formas de expressão para ser capaz de ‘preencher’ e dirigir mais ou menos qualquer papel que provavelmente lhe seja dado”.
64 “A estrutura, como conjuntos de regras e recursos recursivamente organizados”, explica-nos Giddens (1997, p. 29-30), “está fora do tempo e do espaço, exceto em suas exemplificações e coordenação como traços mnêmicos, e é marcada por uma ‘ausência do sujeito’. Os sistemas sociais em que a estrutura está recursivamente implicada, pelo contrário, compreendem as atividades localizadas de agentes humanos, reproduzidas através do tempo e do espaço. Analisar a estruturação de sistemas sociais significa estudar os modos como tais sistemas, fundamentados nas atividades cognoscitivas de atores localizados que se apoiam em regras e recursos na diversidade de contextos de ação, são produzidos e reproduzidos em interação”.
65 Giddens (1997, p. 31) sustenta que “esta ênfase é absolutamente necessária para evitar os erros do funcionalismo e do estruturalismo, erros que, suprimindo ou reduzindo as razões dos agentes –a racionalização da ação como cronicamente envolvida na estruturação de práticas sociais–, procuram as origens de suas atividades em fenômenos que esses agentes ignoram”.
66 Citando Wallace, Giddens (1997, p. 244) aponta que “‘a teoria estruturalista social trata a intencionalidade e outros fatores orientacionais subjetivos como, no mínimo, secundários e, no máximo, irrelevantes para a explicação de fenômenos sociais’. [...] ‘Na sociologia estrutural, a unidade de análise é sempre a rede social, nunca o indivíduo’. [...] Entretanto, também está cuidadosamente separado do funcionalismo, propondo uma noção de estrutura ‘despojada de suas mais amplas conotações culturais e funcionais até ficar reduzida às suas propriedades essenciais’”. A pergunta é: qual serão essas propriedades essenciais sem os atores e agentes que são as unidades constitutiva da própria essência social?
67 Nas palavras do próprio Giddens (1997, p. 30): “De acordo com a noção de dualidade da estrutura, as propriedades estruturais de sistemas sociais são, ao mesmo tempo, meio e fim das práticas que elas recursivamente organizam”. Giddens (1997, p. 225) acrescenta: “Todas as propriedades estruturais de sistemas sociais, para repetir um tema dominante da teoria da estruturação, constituem o veículo e o resultado das atividades contingentemente realizadas de atores situados”. Giddens (1997, p. 441) –acerca da dualidade da estrutura– acrescenta que “a estrutura [é vista] como o meio e o resultado da conduta que ela recursivamente organiza; as propriedades estruturais de sistemas sociais não existem fora da ação, mas estão cronicamente envolvidas em sua produção e reprodução”. Segundo Giddens (1997, p. 442), a própria estruturação –objeto central de sua teoria– seria simplesmente “a estruturação de relações sociais ao longo do tempo e do espaço, em virtude da dualidade da estrutura”.
68 Giddens (1997, p. 335).
69 “Os mais importantes aspectos da estruturação”, informa-nos Anthony Giddens (1997, p. 28), “são as regras e os meios recursivamente envolvidos em instituições. As instituições são, por definição, os aspectos mais duradouros da vida social. Ao falar das propriedades estruturais dos sistemas sociais refiro-me às suas características institucionalizadas, proporcionando ‘solidez’ através do tempo e do espaço”.
70 “Todos os sistemas sociais”, afirma Giddens (1997, p. 42), “não importa quão formidáveis ou extensos [e também antigos, acrescentaríamos nós], expressam-se e são expressos nas rotinas da vida social cotidiana, mediando as propriedades físicas e sensoriais do corpo humano”. E, estreitamente relacionado a esse tipo de entendimento, está um outro também central, que é o da relação desse corpo humano situado no tempo-espaço num ambiente em contínua transformação, que se desdobra e se dá ao longo do tempo, enfim, falamos do ser-no-tempo, mas de um ser no tempo que precisa agir. Acerca disso, e mencionando Goffman, Giddens (1997, p. 43) escreve: “A importância da obra de Goffman deve-se, em não pequena medida, à sua preocupação com a ordenação temporal e espacial da atividade social. Ele é um dos poucos autores sociólogos que tratam as relações tempo-espaço como fundamentais para a produção e reprodução da vida social, em vez de erguer ‘fronteiras’ para a atividade social, uma tarefa que pode ser seguramente deixada para ‘especialistas’ – geógrafos e historiadores”. O que parece escapar ao próprio Giddens é o fato de que é esse mesmo corpo situado topologicamente no tempo-espaço que finalmente propiciou a estruturação das primeiras sociedades de humanos, e que sua teoria da estruturação se encaixa perfeitamente com a bioevolução que precedeu o surgimento da mente autoconsciente do Sapiens. O que propomos é que a abrangência e aplicabilidade de sua teoria da estruturação seja, na verdade, muito mais ampla do que o próprio professor Anthony Giddens tenha proposto, e essa seria então a nossa singela contribuição crítica em relação ao seu belíssimo trabalho em A constituição da sociedade.
71 Em Giddens (1997, p. 270-271).
72 Como lemos em Steven Mithen (2002, p. 241), a faculdade da consciência teria evoluído “como um artifício cognitivo, permitindo que um indivíduo antecipasse o comportamento social de outros membros do seu grupo. Humphrey sugeriu que sua evolução ocorreu para que pudéssemos usar nossas próprias mentes como modelo das mentes dos outros. [...] A consciência evoluiu como parte da inteligência social”. Enfim, segundo essa tese, e no contexto dos nossos ancestrais caçadores coletores arcaicos, por exemplo, teria sido a necessidade de comunicação dentro do próprio grupo, e principalmente a capacidade de imaginar e compreender o que o outro estava pensando, justamente o fator determinante que teria estimulado e propiciado a emergência da consciência, dita de nível superior. Em suma, o surgimento da consciência teria sido uma adaptação importante diante do desafio do convívio nos grupos, ou seja, a mente consciente funciona então como uma resposta a uma necessidade social. “Estou adotando o argumento de Nicholas Humphrey”, informa-nos Steven Mithen (2002, p. 241), “de que ela [consciência] evoluiu como um artifício cognitivo, permitindo que um indivíduo antecipasse o comportamento social de outros membros do seu grupo”. Robert Foley (2003, p. 212) acrescenta que “a complexidade das relações sociais nos fornece o elo para a evolução do cérebro. É difícil prever o comportamento de um outro indivíduo, especialmente se o próprio comportamento desse outro indivíduo depender do que ainda outro indivíduo possa estar prevendo. O fluxo de relações apresenta o problema constante de atualizar o comportamento e as expectativas de acordo com a experiência e a motivação”.
73 Ilya Prigogine (1996, p. 232): “Histórias se ligam umas às outras: a história cosmológica, no interior da qual evolui a história da matéria, depois a da vida e, finalmente, a nossa história”. Edgar Morin (2001, p. 255): “Somos os herdeiros dos protozoários que, incapazes de assimilar a energia solar, desenvolveram, então, estratégias heterótrofas. Somos os herdeiros dos anaeróbicos que, confrontados com o veneno mortal do oxigênio, dispuseram a sua organização de modo a servir-se dele como desintoxicante. Somos herdeiros do peixe atônito que encontrou a sua respiração naquilo que o asfixia”.
74 “Por definição” como escrevemos em Alexandre Quaresma (2020, p. 47) citando Varela, Thompson e Rosch, “o termo acoplamento estrutural faz menção ao fato incontestável de que ‘organismo e ambiente estão mutuamente envolvidos de diversas formas e assim aquilo que constitui o mundo de um dado organismo é atuado por essa história de acoplamento estrutural do organismo. Além disso, tais histórias de acoplamento desenvolvem-se não através de uma adaptação ótima mas antes através da evolução como tendência natural. O tratamento do mundo como preestabelecido e do organismo como representando ou a ele se adaptando é um dualismo’”. Nessa seara, alinhamo-nos com Francisco Varela, Evan Thompson e Eleonor Rosch, ainda em Quaresma (2020, p. 47): “Defendemos que a percepção consiste numa ação guiada perceptualmente e que as estruturas cognitivas emergem de padrões sensoriomotores recorrentes que permite que a ação seja perceptualmente guiada. [...] A cognição não é representação, mas ação corporalizada e que o mundo que cognoscemos não é preestabelecido, mas sim atuado por intermédio de nossa história de acoplamento estrutural”.
75 “Tais conceitos”, aponta Giddens (1997, p. 49) criticando Sigmund Freud, “evocam o tipo de concepção mecânica das origens da conduta humana associada às mais simplistas formas de objetivismo. Parte do problema é o uso dos termos ego, superego e id (quer em sua formulação alemã original ou em sua versão inglesa, cada um dos quais tem alguma conotação de agência; cada um é um mini agente no interior do agente como tal”, e por isso devem – segundo Giddens, e seguindo Giddens – ser descartada”.
76 “O ‘eu’”, afirma Giddens (1997, p.49-50), “tem de ser relacionado ao corpo enquanto esfera de ação. [...] Tenho de saber que sou um ‘eu’ quando falo para ‘você’, mas que você é um ‘eu’ quando fala para ‘mim’, e que eu sou um ‘você’ quando fala para mim... e assim por diante”. “Entendo por ‘agente’ ou ‘ator’”, esclarece-nos Giddens (1997, p. 58-59), “o sujeito humano total, localizado no tempo-espaço corpóreo do organismo vivo. O ‘eu’ não tem imagem, como o self tem. O self, entretanto, não é uma espécie de miniagência dentro do agente. É a soma daquelas formas de recordação por meio das quais o agente caracteriza reflexivamente ‘o que’ está na origem de sua ação. O self é o agente enquanto caracterizado pelo agente. Self, corpo e memória estão, portanto, intimamente relacionados”. Giddens (1997, p.78), apoiando-se em Goffman, sustenta: “De acordo com Goffman, e também com o meu emprego aqui, copresença está estribada nas modalidades perceptivas e comunicativas do corpo”, e é justamente aqui que Giddens parece estancar, e por alguma razão que ignoramos declinar de se aprofundar no difícil problema da consciência, ou mais simplesmente hard problem, negligenciando assim a estruturação seminal biológica do próprio agente social como unidade cognitivo-interativa. Quanto ao hard problem da consciência, apontamos em Quaresma (2020): “Grossíssimo modo, o problema de fundo e maior –em relação ao hard problem– repousa no fato inexoravelmente dado de que (i) a consciência é sempre subjetiva em relação ao sujeito que a experiencia, e que (ii) cada sujeito experimenta essa consciência de modo diferente, e que também (iii) ela é inacessível a outras consciências, já que nenhuma consciência pode experienciar a consciência de outra pessoa. Junte-se a isso o agravante fato de que (iiii) não sabermos como a mente consciente funciona, e nem muito menos como representa-la por meio de linguagens formais conhecidas, e temos então, como resultado, o famigerado hard problem, ou –em bom português– o difícil problema da consciência e sua recalcitrante e renitente insolubilidade”. Surpreende-nos sobremaneira também –como já mencionado anteriormente– Giddens não ter tentado seguir a trilha que leva o Sapiens e todas as demais criaturas vivas existentes retroativamente a uma origem única e comum, já que nesta história estão certamente gravados os primeiros acordes dessa sinfonia de interpretação sociológica que ele mesmo denominou de estruturação. E qual seria a maior e mais importante estruturação manifesta nas mentes de nossos distantes antepassados? Arriscamo-nos a postular –inspirados em Giddens e Mithen– que a resposta é justamente a mente consciente de sua própria consciência, e junto com ela a consciência social como necessidade estruturante de qualquer grupo social.
77 Como escrevemos em Quaresma (2020, p. 411), “esse ser primordial é chamado genericamente de LUCA (Last Universal Commom Ancestor), que em português significa “Último Ancestral Comum Universal”, do qual todos os seres vivos necessariamente descendem”, ainda que seja uma espécie de mistério insolúvel o fato da vida surgir pela primeira vez da física e da química do planeta Terra em formação.
78 “Os pesquisadores sociais”, informa-nos Giddens (1997, p. 394), “devem estar atentos para os modos como os dados quantitativos são produzidos. Pois diferentemente do movimento do mercúrio dentro de um termômetro, os dados sociais nunca são apenas um ‘indicador’ de um fenômeno independentemente dado, mas sempre, ao mesmo tempo, exemplificam aquilo de que ‘tratam’ – isto é, processos de vida social”