Organização social e mulheres negras no quilombo Lagoinha-Paraiba/Brasil: trajetórias de vida, trabalho e coletividade

Social organization and black women at quilombo Lagoinha- Paraiba/Brazil: life, work and community trajectories

Fecha de recepción: 24 de mayo de 2021 / Fecha de aprobación: 19 de julio de 2021

 

Rosana de Medeiros Silva1 y Wallace G. Ferreira de Souza2

 

Resumo

O trabalho de campo que deu origem as reflexões presentes nesse texto foram realizadas na comunidade negra remanescente de quilombo Lagoinha, situada na área rural do município de Serra Branca, região do cariri, Paraíba – Brasil. Tomamos como princípio orientador da pesquisa o “estar lá”, desafio próprio do trabalho etnográfico. Nosso olhar, voltou-separa histórias de vidas das mulheres da comunidade quilombola de Lagoinha-PB/Brasil, pois nosso objetivo foi compreender qual o papel essas mulheres negras no processo de organização daquela comunidade. Para tanto, operamos com as categorias gênero, raça e trabalho a partir do eixo da interseccionalidade. Metodologicamente buscamos através da história oral revelar a relação entre a história social e trajetória individual de cada mulher negra e assim entender como construíram suas identidades. Ao longo da pesquisa dialogamos com intelectuais negras como Sueli Carneiro, Bell Hooks, Djamila Ribeiro, Carla Akotiene, Joice Berth, Lélia Gonzalez dentre outras. No processo de pesquisa de campo também se evidenciou os laços de solidariedade, coletividade e parentesco, dimensões importantes para compreensão da organização social da comunidade, uma vez que, as mulheres passam a se organizar socialmente diante da sua condição especifica de serem mulheres negras quilombolas, construindo uma rede de solidariedade, estratégia evidenciada pela luta histórica Movimento Feminista Negro no Brasil.

Palavras chave: Organização Social, Mulheres Negras, Feminismo Negro

 

Abstract

The fieldwork that gave rise to the reflections present in this text were carried out in the remaining black community of Quilombo Lagoinha, located in the rural area of the municipality of Serra Branca, region of the cariri, Paraíba - Brazil. We take as a guiding principle of the research “to be there”, a challenge proper to ethnographic work. Our look turned to the life stories of women in the quilombola community of Logoinha-PB / Brazil, as our objective was to understand what the role of these black women is in the process of organizing that community. Therefore, we operate with the categories of gender, race and work based on the intersectionality axis. Methodologically we seek through oral history to reveal the relationship between the social history and individual trajectory of each black woman and thus understand how they built their identities. Throughout the research, we dialogued with black intellectuals such as Sueli Carneiro, bell hooks, Djamila Ribeiro, Carla Akotiene, Joice Berth, Lélia Gonzalez, among others. The field research process also revealed the bonds of solidarity, collectivity and kinship, important dimensions for understanding the social organization of the community, since women start to organize themselves socially in view of their specific cof being black quilombola women, building a network of solidarity, a strategy evidenced by the historic struggle Black Feminist Movement in Brazil.

Keywords: Social Organization. Black Women. Black Feminism

 

Introdução

No sentido de contribuir com estudos que evidenciam a liderança feminina negra, direcionamos a pesquisa às mulheres da Comunidade Quilombola de Lagoinha. Essa estando em processo de reconhecimento junto a Fundação Cultural Palmares. A comunidade está localizada na zona rural do município de Serra Branca, região do Cariri – Paraíba/PB - Brasil, situada a 230 quilômetros da capital do estado a cidade de João Pessoa-PB. O município onde a Comunidade negra quilombola Lagoinha está situada têm uma população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 13.637 habitantes, distribuídos em 738 km² de área.

 

Figura 1 - Localização geopolítica do município de Serra Branca – PB

Figura 1 - Localização geopolítica do município de Serra Branca – PB 

Fonte: Adaptado pelos autores de acordo com a base cartográfica do IBGE (2018).

 

Figura 2 - Localização geopolítica da Comunidade Quilombola de Lagoinha

Figura 2 - Localização geopolítica da Comunidade Quilombola de Lagoinha 

Fonte: Adaptado pelos autores de acordo com a base no Google Maps (2018).

 

Durante as idas ao campo encontramos em grande parte das reuniões nas comunidades negras quilombolas do território do cariri paraibano a participação e pro atividade política e organizativa das mulheres. Destacamos que esta pro atividade e liderança das mulheres negras foi fundamental na própria história da luta contra a escravidão negra no Brasil, haja vista, que o trabalho e a capacidade de organização em rede dessas mulheres negras, possibilitou inclusive a compra da liberdade de muitos escravizados. Dessa forma, fazer o trabalho sobre a organização social dessas mulheres negras na referida comunidade, nos levou a entender que há um diferencial no campo simbólico de poder, pois estas mulheres rompem a dicotomia de gênero dos papéis sociais historicamente definidos. As mulheres de Lagoinha se esforçam para transformar as estruturas das relações existentes na sua comunidade.

Todavia, suas falas, sua atuação política, ainda são invisibilidades frente a uma sociedade marcada por valores patriarcais e racistas fruto dos percursos históricos existentes na experiência social brasileira. Assim, as mulheres quilombolas de Lagoinha ocupam um triplo lugar: são mulheres, negras e trabalhadoras quilombolas, lugar identitário que pouco figura na história oficial de formação do Brasil, pois foram tratadas pela literatura e políticas identitárias dentro de uma categoria genérica de camponesas ou agricultoras, negando-lhes sua identidade de mulher negra quilombola.

Após observarmos o protagonismo e a perspectiva de coletividade das mulheres negras da Comunidade Lagoinha, procuramos compreender a seguinte questão: Quais as experiências constitutivas do processo de organização social das mulheres negras da Comunidade Quilombola Lagoinha? Tal pergunta, não pode ser respondida simplesmente por elementos teóricos e conceituais. Foi preciso mergulhar no campo empírico, nas histórias de vida e nas memórias dessas mulheres, para compreender quais estruturas/dinâmicas contribuem para o processo de organização das mesmas. Um destaque é a participação nos movimentos sociais e noutros espaços de formação política. Com efeito, diante a abordagem realizada é possível considerar uma perspectiva que dialoga especialmente com questões de raça e de gênero.

As experiências dessas lideranças femininas em movimentos sociais, suas atuações na vida social e política da comunidade, são fundamentais na reconstrução da história social brasileira, pois estas mulheres são lideranças políticas, mães, donas de casa, agricultoras e educadoras, portanto, agentes de transformação. Ao destacar o protagonismo e o processo de empoderamento das mulheres na comunidade negra quilombola Lagoinha-PB/Brasil, apontamos há existência de um movimento que busca romper com a situação de subalternidade na história do Brasil do lugar social das mulheres negras quilombolas, para uma lógica inclusiva e socialmente justa que promova políticas públicas que atendam as demandas especificas das comunidades quilombolas, bem como, espaços de formação por meio da consciência de si, de suas histórias e da história do lugar de onde falam.

 

Breves apontamentos sobre o movimento feminista negro no Brasil

O feminismo negro surgiu no Brasil entre o fim da década de 70 e o início da década de 80, com intuito de pautar as necessidades especificas da mulher negra, que não era presente no movimento feminista existente. De forma geral, o movimento tinha intensidade exclusivamente voltada para gênero e não via como indispensável à prática de fazer recortes, como por exemplo, etnia e classe social.

No Brasil, pesquisas históricas recentes têm evidenciado a trajetória de luta das mulheres negras pela própria sobrevivência no período escravista. Tal realidade se reproduziu em várias sociedades da diáspora negra, onde a escravização de mulheres negras foi institucionalmente implantada. Falando do contexto estadunidense, Bell Hooks3 (1981) lembra que assumir um lugar de passividade colocaria em risco a existência das mulheres negras no período escravista. A instituição escravista não foi organizada para proteger mulheres escravizadas e livres, mas, sim, para explorá-las econômica e sexualmente. Na sociedade escravista colonial patriarcal, as mulheres negras foram submetidas à violência sexual pelos homens negros e brancos, não gozando, por conseguinte, da proteção de nenhum homem. No período pós-escravidão, poucas puderam escolher se deveriam ou não se tornar trabalhadoras, além do que, para as mulheres negras, o trabalho não representou a independência a ser atingida (Hooks, 1981).

Em 1851, SojournerTruth, ex-escravizada, fez seu famoso discurso intitulado “E eu não sou uma mulher?” – que inspirou o primeiro livro da feminista negra Bell Hooks, publicado em 1981 – na Convenção dos Direitos das Mulheres em Ohio. Dentre alguns questionamentos, ela diz: 

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajudou a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E eu não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem - quando tinha o que comer - e também aguentei as chicotadas! E eu não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendido como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher? (Thuth, 1851).

Thuth, ao fazer o discurso anunciava que a situação da mulher negra era radicalmente diferente da mulher branca. Enquanto naquela época mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto a ao trabalho, mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas. E essa diferença radical fazia toda diferença (Ribeiro, 2018).

Como apresentamos anteriormente, os sujeitos dos feminismos são plurais tal como as teorias produzidas para explicar/analisar suas práticas políticas em constante modificação devido à posição dos sujeitos, às subjetividades produzidas e à particularidade de suas lutas e experiências redefinidas pelos contextos históricos. Sueli Carneiro (2001), em texto célebre intitulado “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina partir de uma perspectiva de gênero” oferece profunda reflexão histórica e teórica acerca do processo de coisificação de mulheres negras, principalmente das primeiras, longamente estruturada na sociedade brasileira desde o período escravista. As experiências historicamente diferenciadas das mulheres negras foram ignoradas pela literatura dominante sobre a opressão da mulher, tampouco produziram avaliações acerca dos efeitos destas experiências com a opressão na identidade feminina das mulheres negras. Assim, defende a autora, no texto citado, a perspectiva de análise em que gênero não pode ser separado de outros eixos de opressão, a partir dessa compreensão:

[...] é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero (Carneiro, 2001, p. 1).

A autora exibe e analisa a atuação das mulheres negras contra a opressão de gênero e raça nos movimentos de mulheres e de negras. Nos movimentos de mulheres, a incidência política ocorre sobre a relação entre racismo e sexismo e os efeitos sobre a vida das mulheres negras, enegrecendo as reivindicações das mulheres e projetando novos contornos para a luta feminista, com a inclusão da contestação das opressões de raça e gênero. No movimento negro, promove a feminização de propostas e reivindicações, feminizando a luta antirracismo. Segundo Sueli Carneiro, este olhar feminista e antirracista integra em si as tradições de luta dos movimentos negros e de mulheres, afirmando “essa nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra” (Ibid, p. 2). Assim, afirma:

Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, [de] demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a ‘boa aparência’, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras.4

O posicionamento de Sueli Carneiro apresenta semelhança com o de Bell Hooks (1981), pois, ambas questionam como um pensamento pode ser chamado de feminista se ele não for intrinsecamente antirracista. Para Bell Hooks, o feminismo negro surgiu como contraponto ao feminismo, em função do racismo das ativistas brancas, e conduziu à polarização de mulheres negras e brancas pela emancipação. A distância que separa as experiências das mulheres negras e brancas não foi vista com potencial de se transformar em ponte para o conhecimento mútuo ou a interação. O racismo, afirma Bell Hooks (1981), é a barreira impeditiva do surgimento de canais de comunicação positivos e não pode ser eliminado ou modificado pela separação. Assim, continua, o conceito de feminismo negro pode vir a isentar as feministas não negras do compromisso necessário para obstar as situações de exclusão impostas às mulheres negras pelo racismo, na medida em que a responsabilidade pelo enfrentamento for atribuída somente às feministas negras. Uma “mulher feminista negra carrega” uma tripa marcação e, por isso, muitas vezes soa ainda mais perigosa para o sistema, porque além de tudo inclui questão racial na sua luta de mulher feminista.

O feminismo negro é um fazer coletivo em torno das mulheres negras, visando à realização da autonomia. O espaço de atuação, para que a tomada de consciência ocorra coletivamente, é delimitado pelas nossas atividades diárias, é, na verdade, ilimitado, na medida em que decorre da responsabilidade de cada uma de nós com o crescimento coletivo das mulheres negras.

O Movimento feminista negro no Brasil emergiu, introduzindo novos temas na agenda do movimento negro e enegrecendo as bandeiras de luta do movimento feminista. Havendo avanços significativos na organização política das comunidades quilombolas, adquirindo dimensões nacionais. Neste sentido, cresceu significativamente a participação das mulheres negras quilombolas, passando de objeto de estudos a sujeitos do conhecimento, e com a crescente tomada de consciência e a capacidade de reivindicatória das mulheres negras especialmente o segmento das mulheres quilombola, o feminismo negro surge como um novo marco civilizatório (Ribeiro, 2018).

Portanto, a construção de estratégias coletivas de luta é um produto de organização social, política, de liderança reconhecida e legitimada. As mulheres negras do cariri paraibano têmbuscado responder esses desafios que estão colocados através de sua organização social e expressões políticas que representem os anseios de todos que fazem parte daquela comunidade.

 

Procedimentos metodológicos que norteiam a pesquisa

Foucault (1988) afirma que “há indivíduos que escrevem e inventam. Um indivíduo, ao dispor-se a escrever um texto, traz para si a responsabilidade de elaborar uma obra possível; ele assume, então, a função de autor”. Dessa forma, em consonância com Foucault, tentamos, ao longo do nosso trabalho, escrever um texto que traduz parte das experiências de mulheres negras quilombolas da Comunidade Lagoinha, da cidade Serra Branca – PB, entrelaçando narrativas orais, memórias individuais e coletivas.

Com a definição e delimitação do tema, abordamos a partir do trabalho de campo as experiências constitutivas para o processo de organização social das mulheres negras na Comunidade Quilombola Lagoinha. Para o desenvolvimento do nosso trabalho etnográfico optamos por um constante exercício proposto por Oliveira (2006) de olhar, ver, ouvir, como também, nessas idas e vindas, enfatizar os momentos do “estar lá” e no “estar aqui” abarcando a concepção de Geetz (2002), que vem perpassando entre coleta de dados e a escrita do texto etnográfico. A intenção nesse contexto é pensar e avaliar o “estar em campo” e “estar fora do local da pesquisa”.

Na perspectiva de compreender a relação das mulheres com a organização social do quilombo, no intuito de estudar a atuação feminina dentro do quilombo, a pesquisa utilizou como técnica de coleta de dados a roda de conversa com as mulheres, inicialmente o grupo foi composto apenas pelas “guardiãs de memória”, as senhoras mais antigas. E posteriormente na casa da Carolina Maria de Jesus, presidente da associação quilombola, houve outras rodas de diálogos.

Deslocando para outros rumos, chegou-se na organização social do quilombo de Lagoinha, em seus aspectos identitários, de raça, de gênero, do trabalho, dos laços de solidariedade, da ancestralidade, levando a abordagem metodológica combinada da entrevista narrativa com a roda de conversa.

As abordagens, metodológica e epistemológica, adotadas pela pesquisa seguem pela via da multifocalidade, em que a própria pesquisa se apresenta em um caráter hermenêutico. Assim, depreende-se que a abrangência e a abertura da pesquisa deverão apresentar análise e reflexões que sejam igualmente multifocais, e que fossem, com efeito, capazes de dialogar com os diversos aspectos e panoramas de estudo. Nesse sentido foi que se pensou para estas combinações o horizonte de compreensão (Gadamer, 1999) como uma reunião de combinações.

Várias são as formas de coleta de dados “que podem constituir a fonte de dados principal, e também por meio de observações, documentos, imagens ou outras fontes de dados qualitativos” (Creswell, 2014, p. 69). Os procedimentos para a coleta de dados em campo foram: a roda de conversa; observação; gravação de áudio; anotações no diário de campo; registro de fotos. Assim, todos os passos que foram dados para a construção dessa pesquisa foram de fundamental importância para aprender, marcar, registrar em nossas percepções, o que está em jogo na realidade social das mulheres da comunidade Quilombola Lagoinha, para a concretização dos objetivos propostos no trabalho.

Pensando inicialmente com o orientador e adequando conjuntamente com os participantes em campo, fora desenhado um quadro de procedimento, que constou das seguintes etapas:

 

 

Quadro 1 – detalhamento do trabalho em campo

CAMPO

Visita ao campo

(Observações, anotações, gravações, fotos, vídeos).

pistas Etnográficas- nas pesquisas do NEPEC, surgiram questionamentos acerca da comunidade de Lagoinha como comunidade tradicional.

Conversa com a líder local – apresentação da proposta do Programa de Pesquisa e Extensão (PROPEX) da Universidade Federal de Capina Grande (UFCG).

 

Visita a comunidade – recepção aos universitários

Primeira ação - como forma de fomentar o espaço de interação entre unidade/comunidade, foi realizada uma primeira atividade, com objetivo de ampliar a compreensão de espaço formativo e, contribuir na valorização dos sujeitos quilombolas.

Organização da equipe de apoio da Roda de Conversas; detalhamento da agenda, local, horário da Roda de Conversa.

Roda de conversa

gravação da Roda de Conversa/Anotações/Observação

Devolutiva

leitura do Relatório/ Diário de Campo com participantes.

 

Na dimensão da escrita etnográfica procuramos abranger envolvimento das questões que estão explicitas no “estar lá” e o “estar aqui”, de Geertz (2002), no intuito de produzir uma descrição da relação entre o observador e observado numa dimensão ética, de maneira simples que abarque todo o universo de objetivos propostos e que relate os dados fieis as aproximações e distanciamentos realizados pelos agentes envolvidos na pesquisa, procurando transformar as experiências vividas em textos escritos. Foi feita uma escuta sensível, e as participantes tiveram voz ativa.

Este estudo articulou os métodos entrevista narrativa e roda de conversa, que em vez de designar essa articulação por “combinação”, foi chamada de ‘’reunião’’. Em relação ao aspecto epistemológico, que também está estritamente relacionado com o metodológico, foi apresentado um desenho que articulou algumas discussões para dar à pesquisa um caráter hermenêutico na produção das reflexões e dos resultados diluídos num horizonte de compreensão.

 

“Quem são essas mulheres?”: caracterização das principais interlocutoras

Para uma breve descrição do perfil das mulheres entrevistas, não se fez necessário manter o sigilo das identificações, todas as entrevistadas assinaram o termo de consentimento para o uso dos seus reais nomes. Com tudo, optamos por usar os nomes das interlocutoras fictícios, onde na identificação das entrevistadas utilizou-se nomes das mulheres negras que tiveram grande importância na história do Brasil, no que diz respeito à luta pela igualdade de gênero suas vozes foram insurgentes, dentre elas são: Dandara, Tereza de Benguela, Luisa Mahin,Tia Simoa, Antoniete de Barros, Maria Felipa, Carolina Maria de Jesus e Acotirene.

Muitas semelhanças entre as elas e as mulheres de Lagoinha puderam ser encontradas, no entanto, o que mais se destacou foram como essas mulheres não aceitaram o destino que lhes foi imposto e lutaram por sua liberdade. Outro ponto comum entre elas é a falta de reconhecimento, uma vez que o papel de destaque em geral é masculino.A escolha das entrevistadas, não se deu de forma aleatória, todas têm ou tiveram passagens marcantes dentro da organização social da comunidade.A voz dessas mulheres é um documento singular que salvaguarda a história dos modos de resistir frente ao um contexto adverso, que impunha variadas formas de marginalização ao povo quilombola.

 

Histórias vividas e vidas históricas: marcam o quilombo de lagoinha

As mulheres de Lagoinha nossas interlocutoras de pesquisa, serão aqui apresentadas com nomes das mulheres negras que tiveram grande importância na história do Brasil, como anteriormente referidas. As entrevistas foram realizadas no ano de 2018 e ao utilizá-las, tentaremos manter o máximo de fidelidade à forma falada. Quem são essas mulheres, como se organizam socialmente e que anseios e esperanças marcam suas trajetórias, são questões sobre quais vamos nos debruçar a partir de agora.

A primeira delas foi Maria Felipa, exemplar essa guerreira, de 51 anos, natural da Lagoinha, irmã gêmea Maria Felipa, filha de Maria Pereira de Lourdes e Edgar José Pereira. Casou-se aos dezesseis anos, com seu primeiro marido teve uma união de treze anos, nasceram quatro filhos, dois faleceram com poucos de nascidos, atualmente está no seu segundo casamento, desta segunda união não tem filhos, é também avó, agrega funções de casa, trabalho, associação, por isso é uma das principais lideranças da comunidade.

Maria Felipa é uma mulher que enfrenta os desafios impostos por sua condição feminina na luta por seu espaço. Nascida em um período em que o acesso à escola era dificultado só estudou até a 5ª série, mesmo assim, Maria Felipa tentou conciliar o trabalho com os estudos. Com oito anos de idade fazia o barro e buscava lenha na cabeça para sua avó produzir os potes de barro, as atividades no roçado iniciaram na sua adolescência, colhendo algaroba, feijão e algodão. Felipa deu um curso diferente à sua vida ao escolher, não permanecer em um casamento por convenção e após sua separação, cheia de coragem, exemplo de mulher pelejadora, deixou a comunidade de Lagoinha por falta de oportunidades, e foi em busca de um emprego na cidade de João Pessoa, sem condições de levar suas filhas, por não ter uma estádia certa, arriscando a sua sorte, Felipa, passou a guarda das crianças para a tia-avó delas.

Ao passar um tempo na capital paraibana, Felipa volta para seu povo, que ela jamais esqueceu e junto com sua gente Maria Felipa como tesoureira da Associação está envolvida nas ações que possam melhorar a vida da comunidade, desde luta pelo reconhecimento como quilombola, a vinda de cursos, palestras que possam conscientizar os moradores dos seus direitos, os mutirões onde ela e outras mulheres limpam a associação e provem o evento na comunidade. Foram inúmeras às vezes que chegamos para as reuniões e eventos, e pudemos encontrar Maria Felipa com a vassoura e um pano sobre o seu ombro limpando a sede da associação antes das reuniões e eventos. Maria Felipa, deixa antever que, sua coragem se realiza na força para enfrentar as mudanças e desafios de criar suas filhas sem um companheiro em uma comunidade patriarcal.

A genealogia da família de Maria Felipa é composta por mulheres que dominaram os espaços e alcançou o respeito dos demais, um exemplo está na sua irmã Carolina Maria de Jesus, atual presidente da Associação. Carolina Maria de Jesus, de 51 anos de idade, com traços fortes, tem a firmeza na fala e a coragem para liderar, apontar os problemas da comunidade e buscar melhorias que abranjam a todos. As entrevistas com Carolina Maria de Jesus ocorreram no ano de 2018. Casou-se muito nova, à idade, acompanhada de sua irmã Maria Felipa, com uma história verdadeira, começou a trabalhar na agricultura, sua vida na comunidade nunca foi fácil.

Carolina Maria de Jesus, não é só mais uma entre muitas “Marias”, desde cedo consciente, no início do ano de 1993, começou a fazer parte da associação como tesoureira, após três anos de muita batalhada dentro da Associação, Carolina passou por um período de desanimo, não encontrava soluções para muitos dos problemas que a comunidade estava enfrentando, mesmo com cargo de tesoureira, esteve sempre a frente das demandas da comunidade, mas, nessa frente ela lutou, e após alguns incentivos e apoio dos moradores, entrou para os movimentos, e hoje como presidente participa ativamente em prol das lutas da associação e para além é agricultora, cuida dos animais, da plantação, dos serviços domésticos e trabalha fora da comunidades em dias alternados como cuidadosa de idosos.

Hospitaleira, a casa branca onde mora, cheia de plantas, flores, animais soltos pelo terreiro, fica localizada ao centro da comunidade, sempre nos recebeu tão bem. Muitos estão sendo seus feitos, que eu queria citar aqui, mulher negra, e forte, nos inspira a batalhar e lutar pelos direitos sem parar e sem calar. Muitas das conquistas para a comunidade começaram do esforço de Carolina Maria de Jesus, transformadora, a sua coragem é inspiradora.

A vida de Tia Simoa, também segue em constante atuação, para muitos da comunidade ela foi a primeira professora, educadora, fazia de sua casa um ambiente de estudos, foi auxiliar de serviços gerais, agricultora, louceira e hoje trabalha nos afazeres domésticos. Tia Simoa nasceu em Lagoinha, e aprendeu logo cedo a ser uma mulher batalhadora. Filha de Aqualtune tem dois irmãos, sua infância foi uma infância tranquila na comunidade, muito protegida pelo pai, ao crescer a vida seguiu tomando novos rumos, diferente do que o seu pai tanto almejava para a mesma. Do seu primeiro casamento teve dois filhos, separou-se do marido e após a separação teve vários trabalhos.

Pela manhã, ensinava na comunidade, a tarde ensina em uma escola na cidade na zona urbana, e após chegar do trabalho se ocupada por cerca de algumas horas na fabricação de panelas de barro, e com a venda lhe ajudava financeiramente a complementar a renda com das panelas. Tia Simoa ficou conhecida como a principal educadora da comunidade, uma mulher negra muito ativa, atualmente dedica seus dias para cuidar de sua mãe Aqualtune, guerreira, uma mulher imponente, nunca se silenciou diante das batalhas impostas pela vida, é uma referência, um espelho poderoso, forte e resistente, a sua coragem feminina é também uma resiliência.

Outro nome importante para comunidade é Antonieta de Barros, com oitenta e quatro anos, já foi casada e desse relacionamento teve cinco filhos. Há mais de dez anos se divorciou, ao falar sobreo assunto, afirma que hoje o ex-marido sabe o quanto mal fez ao deixando, morou por muitos anos sozinha no sítio da família, em Lagoa da Serra, uma comunidade próxima a Lagoinha - PB, também agricultura, cuidava da criação dos animais e das plantações, pra ela hoje em dia viver sozinha não é muito ruim. Após adoecer, voltou para morar em Lagoinha e ficar próximo ao seu povo.

Antonieta trabalhou no roçado “desde que se entende por gente”. Mesmo depois de casada nada mudou, pelo contrário, passou a trabalhar ainda mais para ajudar seu esposo, em busca de uma vida melhor, sempre tão esforçada, conseguiu educar seus filhos, mulher de muita fé, sua crença sempre resistiu e hoje de volta a sua terra, em busca de um recomeço, com muita bravura é inspiradora. Em um final de tarde na comunidade.

Louceiras em outros tempos, Teresa de Benguela, setenta e sete anos, está entre as guardiãs da memória local. É uma senhora negra, forte, que traz no rosto as marcas do tempo e da vida árdua de trabalhadora rural. Irmã de Antonieta de Barros, Teresa é uma das figuras entre as mulheres mais velhas da comunidade. Nascida em Lagoinha, filha de Inácia Rita da Conceição e Felipe Ferreira Mota, casou-se com vinte e oito anos, teve três filhos. Por conta de um problema de saúde de sua filha, depois de passar por vários médicos, após o resultado, o tratamento só podia ser realizado em São Paulo, então, Teresa deixou em Lagoinha seus dois filhos com seu marido e viajou. Como diz Teresa

“[...] quando minha filha estava doente, eu busquei em tudo, em busca da cura de minha filha”.

Morando em São Paulo por sete anos, conciliou em cuidar da saúde da sua filha e trabalhar. No ano de 2014, voltou pra Lagoinha, de onde não quer mais sair, a não ser a passeio para visitar sua família que mora em São Paulo. Nesse momento que ela nos conta que voltou pra suas origens, Luísa de Mahín, esta que estava atenta a conversa diz: “ela voltou, porque o barro dela é aqui, na Lagoinha”. Com a firmeza e espontaneidade vai rememorando outros tempos, as dores, os ausentes e as mudanças que o curso da vida legou aos seus. D. Teresa se lembra das dificuldades que tinha para sobreviver por conta da falta de oportunidade da região. Com um espírito jovial, mesmo com problemas de saúde nas articulações do joelho, com as últimas chuvas que favoreceram as plantações e com ajuda de sua filha foi colher milho e feijão plantados no seu roçado, plantação esta que ela nunca abriu mão, logo com quando criança um dos seus primeiros trabalhos foi na roça.

Trabalhou com muito esforço, a raiz sempre honrou, têm na ponta da língua as histórias dos seus ancestrais, sua origem enaltece, mesmo passando um tempo longe de sua terra, por causa de suas lutas Teresa de Benguela, hoje agradecida pela cura da filha que diante dos momentos difíceis sua escolha foi fundamental para mudar o percurso de vida da sua família, assumindo uma luta, mesmo nos tempos machistas e que sempre em duras pena, deixou sua casa, seus dois filhos e marido e com muita humildade e gratidão tornou-se um exemplo irreparável de uma negra batalhadora.

Em umas das primeiras visitas na comunidade de Lagoinha, nos deparamos com uma senhora muito sorridente, cheirosa, das maiores guardiãs da memória da comunidade, ao qual chamaremos de Aqualtune, acompanhada de sua filha Tia Simoa (esta por aqui já falada), na época do nosso primeiro encontro tinha seus noventa e nove e anos de idade, neta de um dos fundadores da comunidade, a mulher mais velha da comunidade, negra, forte, muito admirada e respeitada por todos, sentou-se na poltrona, esperando dá início a reunião da associação.

Não é todo dia que encontramos uma senhora lúcida, com quase cem anos de idade, preste a completar um século de vida. Participou de toda a reunião e ao finalfomos conversar com Aqualtune, todos admirados pela sua força feminina, sua garra, simplicidade, uma voz calma, resgatando de sua memória as histórias dos seus ancestrais, resgatando suas raízes. Apesar dizer:

“[...] Eu sou a mais velha, mas tenho pouca história pra contar, eu só vivia dentro de casa...”

Ao decorrer de nossas conversas ela lembrou o tempo em que fazia panelas de barros, ia para o roçado, e a maior parte de sua vida dedicou a cuidar de sua família, filhos, netos, da casa. Casada, mãe de três filhos, seu esposo passava uma temporada em casa e outra viajando a trabalho. Foi por meio de Aqualtune que conhecemos duas grandes mulheres negras, guerreiras, louceiras, referência de garra, resistência, coragem, para sobreviverem às lidas e lutas diárias, Dandara e Luisa Mahin. Todas as três são primas, por terem uma forte ligação consideram-se como irmãs.

Após uma conversa proveitosa, combinamos com Aqualtune em retornamos à comunidade e fazer um encontro com todas juntas. Animada com a proposta, a filha de Aqualtune, Tia Simoa, sugeriu fazê-lo na “Casa Grande”. Como combinado, na manhã do dia 07 de maio de 2018, fomos ao encontro dessas mulheres, a casa grande ficou pequena para tantas pessoas, Tereza de Benguela também estava presente, para elas foi um momento memorável, um reencontro emocionante e histórico, havia um bom tempo que elas não se encontravam. As histórias de vida dessas mulheres, de certa forma por terem um forte grau de parentesco, vão se entrelaçando. Abaixo na foto que marcou o encontro delas.

 

Foto 1. Dandara, Luíza Mahin, Aqualtune e Tereza de Benguela.

Foto 1. Dandara, Luíza Mahin, Aqualtune e Tereza de Benguela. 

Fonte: NEPEC, 2018.

 

Dandara, noventa e três anos de idade, ao chegar, trouxe para Aqualtune um presente, ao abrir era uma tigela de barro, ela contou que produziu a peça um dia antes do encontro, cheia de detalhes, nas bordas pintada a mão, umas flores. Ambas trocaram afetos, e um forte abraço, Dona Luísa Mahin, nos agraciou com um poema, inspirado na peça de barro

“[...] Do tronco nasceu uma rama, da rama, nasceu uma flor, da flor nasceu o amor, e o do amor um coração... O barro é o tronco, a rama é ela quem fez, a flor é a panela e a comida e o amor...”

Foi possível observar, a presença constante de um sistema de reciprocidades. Este sistema, que se expande ou se retrai a partir de um tríplice obrigação coletiva de doação, de recebimento e devolução de bens simbólicos e materiais, é conhecido como dom ou dádiva (MAUSS, 2003). A obrigação do dom aparece necessariamente como um fenômeno total, atravessando a totalidade da vida social na medida em que tudo aquilo que participa da vida humana, sejam bens materiais ou simples gestos, que tem relevância simbólica.

Dandara trabalha com o barro “desde que se entende por gente”. Com este trabalho criou seus nove filhos. Como ela diz:

“[...] tive dez filhos até de dois, gêmeos. Morreu um, porque Jesus quis pra ele, o resto eu criei e tão vivo... Sorridente, continua: [...] Graças a Deus fui muito feliz, Deus me deu muita felicidade...

Enquanto fazia panela de barro o marido trabalhava fazendo cerca. Para dar de conta da fabricação de panelas pagava para cuidar dos seus filhos e fazer a comida. Uma mulher de força, Dandara, conta que, muitas vezes madrugava noite, fazendo louça. No outro dia, ia comercializar as peças na feira de Cordeiro, Coxixola, e Serra Branca. Como ela diz Dandara: “era três feiras que eu ia”. Casou no ano de 1950, no dia 30 de Novembro, a união durou por mais de sessenta anos.

Eu fazia sozinha, eu e Deus e Nossa Senhora. Eu fazia 50 vasilhas, colocavas todas em um canto, quando completava as 50 eu queimava. E assim ia levando, mas não era muito bom não. Mas, nunca passei fome. Eu trabalhava com muito gosto pra dá de comer aos meus filhos.

Consideramos que a postura de Dandara e firmeza, com seus 91 anos de idade, configuram numa liderança local. Ao manter a tradição da fabricação de panelas, confrontando com suas realidades em prol dos seus objetivos. E desse trabalho alimentou os seus filhos durante muitos anos, do barro aos enfrentamentos cotidianos pela sobrevivência.

Gostaria que Luísa Mahin, guerreira, fosse muito lembrada, com respeito e reverência. Como diz Luísa:

“[...] E haja história, e a mais difícil é a minha... eu quando fiquei sem meu marido eu tinha um filho que ia completar quatro anos, e ele me deixou com oito filhos, depois disso chegou três netos pra eu criar...

A vida de Luísa foi de trabalho constante, louceira, de noventa e dois anos. Luísa nasceu, na comunidade de Lagoinha, em uma casinha de taipa. Após alguns anos foi morar em Porção, povoando próxima a Lagoinha, e aprendeu a fazer panelas com as mulheres da família. Atualmente mora na zona urbana de Serra Branca, não exercer mais ofício de louceira. O trabalho com o barro é uma das tradições mais antigas de Lagoinha e Ligeiro de Baixo, comunidade próxima, de onde surgiram as primeiras louceiras de barro, e já representou a principal forma de sustento das famílias da região. Hoje, poucas mulheres se dedicam a este trabalho, sendo que Luísa Mahin e Dandara, umas das principais louceiras da região. Ela conta que aprendeu também esse oficio “pra viver” e repassou para suas filhas: “Botei tudo para aprender.”

A perda do marido, não causou impedimento, Luísa foi com tudo, não a faz parar, foi nas louças de barro que ela criou seus filhos e buscou o sustento financeiro para sua família. É por isso que Luísa Mahin tem seu papel importante como liderança, ela teve seu heroísmo, pois sem medo de lutar enfrentou as lutas, enfrentou uma sociedade patriarcal. Luísa foi pulso firme e batalhadora, buscando o direito de viver com seus filhos e netos, incansável lutadora, ela deu exemplo, rompendo as barreiras impostas pelo tempo.

 

Mulheres Negras e Atuação no Quilombo de Lagoinha

A geração das mulheres mais velhas de Lagoinha é composta por senhoras fortes, lúcidas, como Aqualtune, Dandara, Luísa Mahin, Teresa de Beguela e Antonieta de Barros. Observamos que todas são mães e articulam outros papéis. Observamos em quais se articulam melhor e dividimos em blocos as mulheres que ocupam os papéis de líderes, louceiras e guardiãs de memória. O cotidiano dessas mulheres será desvelado a partir dos lugares que assumem junto à comunidade. O trabalho e atuação das mulheres negras na comunidade quilombola de Lagoinha, tanto do passado quanto no presente, se inscreve como sinônimo de luta, honra,coletividade,respeito e resistência.

 

Líderes

Carolina Maria de Jesus possui um perfil de liderança e pro atividade nas questões políticas de Lagoinha, e junto com ela sua irmã Maria Felipa. Ambas podem ser consideradas as principais lideranças locais fato reconhecido por outros membros da comunidade ao falarem das relações com o grupo. Uma das moradoras da comunidade diz a respeito de Carolina:

Assim, é uma pessoa que é mais, que toma mais decisões aqui é Carolina né? Por que é Carolina, Felipa, é porque se tem alguma coisa sempre tem alguma coisa que tem por exemplo que marcar reunião, sempre é elas entendeu? E assim, se tem alguma coisa, elas são as duas líderes né, da comunidade. Que sempre as coisas são mais passadas por elas, se vem um projeto é elas, uma reunião é com Carolina, que comunica pra todo mundo que tem uma reunião de tal coisa assim, assim. E eu acho que elas são duas líderes na comunidade.

Carolina Maria de Jesus é a principal articuladora política da comunidade. Em seu percurso de vida e trabalho, ganhou respeito e admiração dos moradores de Lagoinha que a ela recorrem para tratar de suas questões e para ajudar na luta por alguns direitos. Os moradores de Lagoinha são rápidos em dizer: “Mas quem sabe melhor sobre isso é Carolina”, deixando em evidência ser ela que tem os envolvimentos melhores com as questões locais. Atualmente seu percurso como líder da comunidade dá-se pela luta do processo de reconhecimento da comunidade Lagoinha torna-se oficialmente uma quilombola, também participa de muitos eventos até em outros municípios como represente da comunidade, buscando da visibilidade a mesma.

O processo de autoreconhecimento da comunidade Lagoinha, mobilização está acontecendo por parte de Carolina Maria de Jesus e sua irmã Maria Felipa, moradoras de Lagoinha. Carolina muito ligada aos relatos e à memória do grupo, ela acredita que o processo de rememoração será importante para o fortalecimento do sentimento de pertença dos moradores da comunidade. Através das senhoras, como em fala ela diz: Dona Aqualtune “é uma verdadeira escola”. Aqualtune guarda memórias de outros tempos e atuam como guardiãs das tradições antigas.

Uma das queixas está na fala de apoio das outras mulheres em relação ao trabalho e à luta cotidiana. E diz que, apesarem de comparecem quando convocadas, a grande maioria das mulheres não quer assumir responsabilidades, pelo que se angustia:

“Muitas vezes é difícil, né? Uma andorinha só não faz verão... uma pessoa só pra fazer uma coisa e às vezes tem que fazer sozinho, tinha que ter o grupo de pessoas responsáveis por aquilo e elas aqui muitas vezes não querem compromisso, essa é a maior dificuldade”.

Essa liderança comunitária é dividida também com Maria Felipa, sua filha. Uma mulher de espírito jovial, Maria Felipa enfrenta os desafios estruturais da vida em comunidade e os paradoxos que esses estabelecem com seus anseios de mulher independente, segundo Priscila Bastos (2010), o modo como a sociedade representa o ser jovem, mulher e negra tem raízes nas diferenças biológicas e nos significados sociais dessas diferenças constituídas como expressão das relações hierárquicas de gênero, raça e geração. Na formação da sociedade brasileira estas diferenças hierárquicas faziam com que a mulher negra fosse subalternizada num processo de exclusão, silenciamento e controle social, que a atingia em todos os âmbitos. A mulher negra, durante a escravidão era rebaixada, na sociedade livre, impedida de emergir como figura política.

Com estes entraves históricos, naturalmente que o processo de aprofundamento em seu fazer político e social não ocorre de forma simples e as mulheres quilombolas precisam disputar espaços de poder. Na Lagoinha, ainda que exista um núcleo de liderança feminina, os pontos de vista masculinos ainda são muito fortes, requerendo delas um constante jogo de cintura para driblar os obstáculos. Diante dessa concepção é fundamental para pensar as desigualdades por uma perspectiva de gênero, partindo dos lugares sociais das mulheres. (Berth, 2018, p.45).

As mulheres que fazem parte da articulação política na comunidade Lagoinha, precisa de empoderamento, não aquele na visão superficial. Joice Berth (2018) salienta que esses olhares distraídos levam a desentendimentos, ou melhor, ao entendimento que o empoderamento feminino é a superação do individual de certas opressões, mas sem romper de fato com as estruturas opressoras. Para a mesma, esta é uma definição equivocada e auto centrada, deve pensar o empoderamento, no sentido que a socióloga colombiana Léon, destaca:

Uma das contradições fundamentais do uso do termo ‘empoderamento’ se expressa no debate entre o empoderamento individual e o coletivo. Para quem o uso o conceito na perspectiva individual, com ênfase nos processos cognitivos, o empoderamento se circunscreve ao sentido que os indivíduos se auto conferem. Tomo um sentido de domínio e controle individual, de controle pessoa. E “fazer as coisas por si mesmo”, “ter êxito sem a ajuda dos outros”. Esta é uma visão individualista, que chega a assinalar como prioritários os sujeitos independentes e autônomos com um sentido de domínio próprio, e desconhece as relações entre as estruturas de poder e as práticas da vida cotidiana de indivíduos e grupos, além de desconectar as pessoas do amplo contexto sócio-político, histórico, do solidário, do que representa a cooperação e o que significa preocupar-se com o outro(Léon 2001, apud Berth, 2018, p.40-41.)

Conforme acrescenta, a própria Léon, empoderamento individual não se relaciona com ações coletivas, pode ser ilusório, vez que o empoderamento inclui tanto a mudança individual quanto as ações coletivas, portanto:

Se a coletividade é o resultado da junção de muitos indivíduos que representa alguma – ou algumas – elementos em comum, é intrínseco que estamos falando de um processo que se retroalimenta continuamente. Indivíduos empoderados formam uma coletividade empoderada e uma coletividade empoderada, consequentemente será formada por indivíduos com alto grau de recuperação da consciência do seu eu social, de suas implicações e agravantes”.

Carolina Maria de Jesus e Felipa, por caminhos diversos e a aceitação de demandas locais tornaram-se lideranças femininas em Lagoinha. Essas duas mulheres circulam nos lugares de poder da comunidade que, apesar de sua origem patriarcal, vê surgir uma nova configuração de poder com o feminino. Avaliamos que a importância dessas mulheres nos espaços que atuam lhes garante prestígio e suas ações de articulação política e organização da comunidade tem passado por esta concepção de empoderamento onde a relação coletiva é fundamental.

2.2 Louceiras

Dandara é uma das paneleiras que mantém a tradição do fabrico de barro por anos. O passado da comunidade se revela nessa reminiscência, abrindo a possibilidade de uma influência nas tradições locais. A modelagem do barro para produzir as panelas é um oficio antigo, que muitas nem sabem determinar quando começou a ser feito por suas famílias e quem as ensinou. Há alguns anos quase todas as mulheres confeccionavam panelas para o seu sustento, atualmente Dandara é a única que ainda continua com o oficio. Nas entrevistas algumas mulheres dizem que se desestimularam por conta do baixo valor recebido nas panelas e abandonaram o trabalho. A grande maioria delas são donas de casa, trabalhando na agricultura em alguns períodos do ano, trabalhando na zona urbana, e outras se sustentando de aposentadorias, pensões e alguns programas governamentais, como a Bolsa Família.

As questões de gênero são marcantes, visto que o fabrico é uma tradição geracional passada de mãe para filha e exclusivamente realizada por mulheres. É um conhecimento ancestral, um trabalho feminino por remeter às obrigações domésticas e lida com utensílios de casa. No trabalho com o barro se tornam independentes e donas de sua vida. Dandara, Tereza de Benguela, Luisa Mahin, Antonieta de Barros, Aqualtune, Tia Simoa, são mulheres que transitam entre os muitos papéis de dona de casa, paneleira, educadoras, trabalhadora rural e guardiãs de memória. No trabalho com o barro vai se amalgamando aos laços familiares, sociais e identitários, pois tem clara relação com a construção identitária e as redes de solidariedade entre as pessoas da comunidade.

 

Guardiãs da memória

As lembranças de Aqualtune, Dandara, Luísa Mahin, Teresa de Benguela e Antonieta de Barros, se misturam as memórias coletivas do lugar, de tempos em que ainda eram muito pequenas, as narrativas dessas mulheres possibilitam “viajar através da viagem narrada” (Delgado, 2010, p.41). Suas lembranças agregam muitos tempos e são por isso tão significativa. Suas rememorações mesclam fatos coletivos e individuais, acontecimentos que, ainda que tenham sido vivenciados pelo grupo, impactaram, particularmente, a sua subjetividade. Como atenta Ecléa Bosi, (2007 p.150) isso é muito comum quando se perde alguém importante, Dandara e Luísa Mahin, com a perda de seus maridos, marcaram profundamente. Elas lembram o ano que veio a falecer, as complicações, a idade, a vida após a perda.

As dificuldades financeiras fizeram com que não poupassem braços para o trabalho na roça, na louça. Vidas marcadas pelo trabalho desde muito nova, por conta disso não puderam estudar, mas se orgulham e dizer que não legou os filhos e netos por mesmo destino.

Nas comunidades negras rurais sempre se encontram senhoras e senhores que atuam como memorialistas. De acordo com Antônio Torres Montenegro, essa representação de que os mais velhos são bons narradores nem sempre se realiza, para que isso ocorra é necessária a junção de fatores descritivos e imaginários que os habilita a serem bons narradores. Sobre o ato de rememorar, Antônio Torres Montenegro pondera que “este processo de mediação com o passado é constantemente influenciado pela vivência do sujeito e passa por mudanças”. (Montenegro, 2007, p. 150). Utilizar a História oral como fonte requer que se assumam os riscos e as posturas necessárias na coleta das entrevistas, observando que as narrativas se dão no presente, onde todas as pessoas entrevistadas representam um “amálgama” de histórias relevantes em potencial. Sobre essa relação entre memória e história oral, Alessandro Portelli diz:

A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato de a História Oral dizer respeito às versões do passado, ou seja, a memória. Ainda que seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. (...) se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados poderá constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. (Delgado, 2007, p.150).

Ecléa Bossi sobre as memórias de velho observa que “ao lembrar-se do passado ele não está descansando, por um instante das lidas cotidianas, não está se entregando furtivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando conscientemente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida”. (Bosi, 1994, p.60). Assim viveram essas mulheres guardiãs de memória de Lagoinha, com as fortes marcas do tempo em seu rosto, as mãos ásperas do trabalho e o olhar situado ao meio, entre o presente e o passado.

Ser negra em uma sociedade repleta de racismo, machismo e misoginia escancarados e/ou velados é existir por meio da resistência. Histórias como essas agora contadas, antes eram negligenciadas. As mulheres negras precisam ser ouvidas enquanto suas palavras são ditas e não ecoadas. E esses olhares das mulheres mais velhas da comunidade contribuem, contudo no âmbito político e social para que elas buscassem a falta de representatividade, tempo e espaço para reflexão acerca da realidade em ser mulher negra e como atinge o coletivo dentro da comunidade.

 

As mulheres negras quilombolas do cariri paraibano e sua atuação e organização social

No Brasil, durante o século XIX, as mulheres negras escravizadas, livres ou libertas tinham lugares demarcados para sua convivência e o trabalho. Algumas escravizadas eram as preferidas para os trabalhos domésticos, em virtude de sua proximidade com os senhores que lhes tinham confiança; já os trabalhos de ganho, feitos na rua, eram exercidos por africanas e negras livres e libertas. A rua era considerada o lugar da imoralidade e dos vícios que os senhores não desejavam trazer para suas casas. Para as mulheres negras, a rua apresentava a oportunidade de se socializarem e se libertarem das rotinas rígidas das casas senhoriais, e era também lugar de embates e conflitos.

As mulheres negras rurais em grande maioria convivem com estruturas que legitimam as desigualdades raciais e de gênero. São influenciadas pelas múltiplas identidades que afloram no seu entorno de mulher rural e quilombola e sofrem preconceitos variados para se afirmarem como trabalhadoras rurais. A inserção das mulheres no meio político é um caminho tortuoso, mais coerente com o curso das lutas das trabalhadoras rurais da década de 1980 até a atualidade.

Sobre esta inserção, Celecina Sales diz que “ao ingressar em movimentos, as mulheres rurais criam possibilidades de se afirmarem como portadoras de um saber-poder no campo da política, que lhes proporcione também repensar seu cotidiano”. (Sales, 2000, p.240). A formação política dessas mulheres dá-se a partir das malhas do cotidiano, das necessidades de sobrevivência coletiva e individual, nas competências adquiridas para se fazer ouvir e serem respeitadas em uma comunidade. Essas competências são adquiridas cotidianamente nas articulações da linguagem e mediação política que favoreçam que o discurso construído seja aceito em determinada situação (Bordieu, 1983, p.158). São competências que se configuram em um poder periférico e se estendem a uma rede de mecanismos que atinge a todos dentro de um grupo. De acordo com Michel Foucault (2000), o poder, em sua esfera macro ou micro, é exercido nas práticas cotidianas.

Para se compreender sobre as dinâmicas de poder e gênero das mulheres negras e quilombolas, são necessárias diferentes categorias de análise que permitam perceber as especificidades destas relações e as negociações nelas envolvidas. Numa comunidade quilombola, os lugares de poder são negociados e consentidos, e são neles que a mulher negra assume a sua força e a liderança comunitária. Seus saberes e fazeres se articulam nas práticas e enfrentamentos que são necessários para que se mantenham nos espaços que conquistaram.

O cotidiano das mulheres em Lagoinha é marcado por muito trabalho. As lidas domésticas, os trabalhos da associação, o trabalho no campo e a fabricação do barro são algumas das esferas de atuação das mulheres da comunidade de quem já falamos anteriormente: mães, líderes, louceirase guardiãs da memória. E num povoado rural com poucas opções de trabalho e renda, como é o caso de Lagoinha, ocorre dos homens terem que sair para vender seu trabalho nas fazendas próximas, com já falado uma das atividades comum dentre os homens e fazer cerca e trabalho no roçado e as mulheres, quando não os acompanham, busca alternativas de trabalho dentro e fora da comunidade.

Como já observado em outros momentos, as comunidades quilombolas possuem peculiaridades, em especial na sua relação com o território e nas possibilidades de trabalho e renda. A falta de opções de trabalho leva muitos quilombolas a trabalharem nas lavouras alheias como assalariados. Neste lugar, o trabalho feminino é visto de muitas maneiras: “como “serviço leve” que gera uma situação de remuneração absoluta menor quando comparada à diária paga pelos fazendeiros a serviços pelos homens”. (Brandão, 1994, p.163). Como aponta autor, há uma tênue linha entre o trabalho considerado “produtivo” e o “reprodutivo”:

O gênero estabelece uma distinção e diferenciação entre o chamado trabalho “produtivo” remunerado e o chamado trabalho “reprodutivo” e doméstico não-remunerado. Este último é o espaço culturalmente associado à mulher, enquanto o primeiro é associado aos homens.

Atualmente o trabalho na agricultura não representa para a maioria das mulheres, que vivem nas comunidades quilombolas de Lagoinha a atividade mais importante, embora não tenha deixado de exercer um papel fundamental. Assim, fazer os roçados permanece sendo uma prática recorrente e importante paraessas mulheres, todavia não mais como a principal fonte de renda, como havia sido no passado, mas como importante fonte de alimento. Isso não quer dizer que não existam atualmente famílias que se sustentem tendo o trabalho na agricultura sua principal atividade. Não queremos afirmar que as mulheres quilombolas na Lagoinha trabalhavam somente na agricultura, fazendo os roçados. Realidade que não reflete a forma como o campesinato se reproduz socialmente. Não somente plantavam os roçados, outras atividades também faziam e ainda faz parte da sua reprodução social, como a criação de animais e a produção de panela de barro.

Embora a agricultura e a produção de louças de barro não se configurem mais na principal atividade que sustente a família, estas mulheres não deixaram de serem agricultoras.Antigas estratégias foram consolidadas, outras foram criadas, permitindo às mulheres quilombolas da Lagoinha existir enquanto tais.

São diversas as estratégias acionadas pelas mulheres dessa comunidade, que lhes permitem continuar se reproduzindo socialmente enquanto grupo. Dessa forma, procurar empregos e se empregarem fora do lugar onde moram é uma constante na trajetória de vida de dessas mulheres da comunidade quilombola Lagoinha, como já mencionado anteriormente. Os companheiros das mulheres quilombolas costumam se empregar na construção civil como ajudantes de pedreiro, mas na sua maior parte, trabalham na produção de cerca. Por outro lado, uma parcela das mulheres, com baixa escolaridade, se ausenta dessa comunidade durante a semana para trabalhar em serviços domésticos, principalmente no município de Serra Branca. Essas ocupações, geralmente, se realizam por meio de contratações temporárias e informais, em troca de baixos salários.

As mulheres que se identificaram como donas de casa, agriculturas e “outros” não desempenham apenas o trabalho na casa ou terreiro, desenvolvem outras atividades como: cuidadora de idoso; fabricação de panela barro, diaristas em casa de família, professora, funcionárias públicas, na plantação, por muito tempo trabalharam na colheita de algaroba, feijão e algodão. Atualmente algumas trabalham no roçado quando chove e elas conseguem plantar, outras, aguando a plantação de palma. Na comunidade uma atividade comum dentre elas por muito tempo foi à produção de panela de barro, para a comercialização. As mulheres, principalmente as mais velhas nos contaram que iam para as feiras livres nos municípios próximos de Serra Branca (Sumé, Coxixola, Cordeiro, São João do Cariri). Atualmente apenas, Dandara trabalha fabricando panelas de barro.

As mulheres da comunidade não trabalham somente nos roçados na época certa de plantar as sementes e colher. Associado ao trabalho na agricultura vem o trabalho como fabricação de louças. Há também as políticas públicas, como o Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Cariri, Seridó e Curimataú (PROCASE), que tem como intuito ampliar a cadeia produtiva de caprinos e ovinos, com base na sustentabilidade e convivência com semiárido, fortalecendo a criação e comercialização desses animais, e as aposentadorias rurais que complementam a renda dessas mulheres.

A falta de oportunidades para essas mulheres negras também é prejudicial ao desenvolvimento e independência financeira das mesmas, aspecto que tem um impacto direta na saúde financeira dos núcleos familiares. Muitas vezes as levam a acreditar que apesar do machismo e racismo, não existe preconceitos que limitem suas expectativas. São diversas as estratégias acionadas, que possibilitam a essas mulheres quilombolas se organizarem socialmente enquanto grupo para que continue vivendo na comunidade nos lugares que escolheram viver.

 

Organização social, mulheres e temas conexos: trabalho e coletividade

As mulheres negras nos registros oficiais da história são (sub)representadas pois congregam em si duas condições de exclusão -, ser mulher e ser mulher negra. Se hoje essa realidade é vivenciada por estas mulheres, no contexto da escravidão esses processos de exclusão, silenciamentos e exploração ainda eram mais acentuados, como nos lembra Soares (2006), “[...] embora muito numerosos, os documentos onde existe referência a negra são produtos da mentalidade de homem numa sociedade patriarcal escravista” (p. 17).

Podemos assim apontar que, as mulheres negras da atualidade ocupam um lugar significativo nas lutas pela igualdade de oportunidadee a valorização da cultura afrodescendente com sua diversidade estética, culinária e espiritual, dimensões que dão contorno e formam a cultura brasileira. Portanto, registramos que com sexismo e racismo não existe democracia. Ou seja, discutir a história da conformação da sociedade brasileira e de suas múltiplas identidades é discutir, também, a participação e atuação das mulheres negras nesse processo.

No contato com a comunidade quilombola Lagoinha nos deparamos com mulheres de diferentes gerações e experiências de vida: senhoras com pele marcada pelo tempo, olhos vividos e sagazes; mulheres de meia idade que trazem o mundo nos olhos e o trabalho nas mãos firmes e calejadas; jovens, herdeiras da força das mais velhas,vivazes e atuantes. Algumas são mães, filhas e avós de uma mesma família e na genealogia das famílias da região vão se delineando as estratégias femininas, os modos de vidas e as reminiscências do lugar.

Se quisermos entender a organização social das mulheres de Lagoinha, os aprendizados transmitidos entre elas, os processos de criação e até os próprios ciclos de vida feminina, temos que direcionar o debate para o trânsito dessas mulheres em diferentes espaços sociais. A significativa mobilidade que elas estão inseridas, transitando entre o rural e o urbano quebrando totalmente o contexto de comunidade isolada, esta que está próxima da zona urbana o que mostra a ligação que têm elas em mover-se entre os dois espaços.

A trajetória das mulheres da comunidade quilombola Lagoinha se apresenta em constante mudança e movimentação que passam pelos papeis desempenhados em casa (no espaço privado), na comunidade, no movimento especifico (espaço públicos), bem como no assumir-se como mulher negra quilombola. É nessa amplitude de formação das identidades, na construção e reconstrução de gênero que procuramos estudar as mulheres negras da comunidade Lagoinha em seus movimentos e práticas cotidiana ora no movimento social, ora no movimento quilombola e na associação da comunidade, e essa articulação são associadas a um interesse coletivo dessas mulheres negras dentro do social, conforme a figura abaixo.

 

Figura 2 – Articulação das mulheres negras do Quilombo de Lagoinha.

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Fonte: elaboração pelos autores, 2021

 

A partir da fala das participantes, já era possível ter uma visão de como as histórias das famílias quilombolas se entrelaçavam. Talvez também porque, na perspectiva que essa pesquisa apontou, a coletividade tenha sido compreendido com um empreendimento que envolve todos os indivíduos numa relação como se fossem uma única família. E essa condição só pode ser compreendida se considerar as dinâmicas e tensões que envolvem a associação frente a pauta de luta que ela aciona e sustenta as articulações dentro da comunidade e entre as mulheres quilombolas de Lagoinha em busca de um único interesse coletivo e social.

Na atualidade, a mulher negra luta por seu espaço no mundo do trabalho, associações, faculdades e nas múltiplas relações sociais, onde em diversos âmbitos busca romper com as nominações racistas e sexistas. Podemos agora pensar sobre as significações em ser mulher negra e quilombola, visto que, diferente da mulher negra e urbana, as primeiras são diretamente influenciadas pela conjuntura das relações no meio agrário, a divisão do trabalho entre os gêneros, as lutas e negociações pela terra e a liderança. Rosângela Miranda, ao falar da experiência das mulheres quilombolas de Rio das Rãs, diz que:

Em se tratando de sertão, tradicionalmente a vida das mulheres era dividida entre a casa e a roça, levando-as à condição de sujeitos invisíveis, sem o reconhecimento social. [...] A mulher se fazia presente na luta pela terra, nos afazeres domésticos e nos trabalhos dos roçados. Enquanto os homens estavam negociando a posse da terra, eram elas que limpavam as terras, plantavam e ainda preparavam os alimentos (Miranda, 2011, p. 55).

Estas também são as experiências das mulheres de Lagoinha. Em suas narrativas pudemos constatar que, em suas itinerâncias, elas foram driblando limitações e assumindo posturas e lugares de liderança. Quem são elas? Como vivem e se relacionam? Quais são estes lugares de liderança? Estes questionamentos trouxeram contribuições e grandes posicionamentos. O artigo publicado por Conceição de Evaristo (2018) aborda de maneira direta o modo como a falta de representatividade, tempo e espaço para reflexão acerca da realidade da mulher negra afeta o coletivo.

Só teremos uma saída viável quando nos organizarmos de maneira coletiva, política e sistemática: temos que pensar e refletir sobre o lugar histórico e cultural que nos colocaram enquanto mulheres negras, e qual o impacto desse lugar para nossa organização econômica e, portanto, nossas possibilidades de existência e também de resistência. Temos que ter espaço, tempo e condições de refletirmos sobre nossa existência e realidade, a partir de nossas vivências e experiências ao longo de nossas vidas, dentro e fora dos círculos de poder como a política e a universidade (Conceição, 2018).

Conceição reivindica primordialmente que a pauta sobre a necessidade de se levantar um debate sobre essas mulheres “comuns”. Mães, jovens, idosas. Mulheres que estão excluídas de ambientes politizados, como as universidades, e que são consideravelmente afetadas pelas sequelas do racismo e machismo no cotidiano. Mulheres que vivem e não falam sobre falta de tempo, espaço e pela inexistência de quem as ouça.

Longe de buscar generalizar os distintos contextos, ao invés de uma resposta para a questão central, formamos hermeneuticamente nesse grande horizonte de compreensão a seguinte consideração: quando se trata de descendentes de africanos na diáspora, parece fazer mais sentido evidenciar o aspecto ancestral africano da família ampliada e suas singularidades instituídas nas suas organizações sociais locais, regionais (multidiaspóricas) – em que se expressam o matriarcado, a coletividade, o trabalho, as questões de gênero, os laços de solidariedade etc.

 

Conclusão

As mulheres quilombola são longo da história da sociedade brasileira vem exercendo papel importante na construção do estado democrático de direito, sua existência e resistência cotidiana é uma demonstração desse papel e força transformadora, apesar de submetidas a uma lógica que nega sua existência, os prejuízos históricos
acumuladospor várias gerações em decorrência do processo de escravização, da
exploração de suas vidas no período colonial, dos efeitos devastadores na forma com que o
restante da sociedade se relacionou, enxergou e reconheceu suas vidas.

O trabalho, tanto do passado quanto do presente, se inscreve como sinônimo de luta honra, de respeito e de resistência – dialoga, mas não se restringe a uma leitura especifica a acerca da estrutura capitalista são relações de produções econômicas que o circunda, e já foi tão exaustivamente (nem por isso menos importante) discutida pelo marxismo e por suas correntes afins. Nessa pesquisa, a categoria trabalho – que se compreenda, não tem o mesmo sentido da abordagem clássica, embora, em alguns casos se conecte a ela. Na comunidade quilombola de Lagoinha, o orgulho e a dignidade observados nos relatos se associam muito com a espécie de “fé pública” para o gozo do respeito nos círculos sociais para aquelas que são identificadas como pessoas trabalhadoras, batalhadoras, esforçadas, dedicada aos afazes e à família. Portanto, o trabalho nessa pesquisa se apresenta como oficio, afazeres, transmissão de saber, memória, afeto, educação e cuidado de forma geral e variada.

Como organização social quilombola, foi possível observar a coletividade, como um elemento relevante, com forte atuação das mulheres negras, de onde partimos como foco inicial da pesquisa. E ao longo da pesquisa o cenário se apresentou ainda mais abrangente, e também, mais significativo para o estudo. A coletividade é uma forte característica identitária dos grupos afro-brasileiros. Ele, portanto, apontava como peça fundamental para compreensão e organização social do quilombo de Lagoinha. Por isso, os pressupostos indicavam que, compreendendo o significado da coletividade para o grupo se compreenderia a dinâmica que organiza a vida na comunidade quilombola.

As participantes fizeram suas falas sempre na primeira pessoa, destacando o histórico das famílias, em especial na atuação do trabalho. Elas falavam das mulheres e homens da sua família. E todas as falas apontavam para a luta por direitos, através do trabalho doméstico e rural das figuras destacadas. Depreende-se também que a coletividade se expressa fortemente pela atuação dos sujeitos quilombolas com o trabalho na terra e sua relação com o território. Nessa relação com a terra estres sujeitos se conectam espiritualmente com os seus antepassados pelos laços de memória das técnicas do cultivo aos procedimentos do cuidados com as criações.

Interessante observar que, mesmo que o trabalho se restrinja, a priori, à estreita estrutura da família nuclear, a questão do compadrio, da solidariedade, da associação de moradores, dos mutirões nas festividades e no trabalho rural, é que a coletividade é destacada, mas como articulações realizadas precedidas por demandas de trabalho. E em todos estes ambientes a presença da mulher quilombola é marcante.

As mulheres negras quilombolas do Cariri Paraibano, seguem trabalhando arduamente, rompendo barreiras do modelo patriarcal e do racismo impregnado no processo histórico de formação da sociedade brasileira, promovendo debates, reproduzindo seus saberes, e mantendo uma relação de respeito e reciprocidade com o meio que habitam através da solidariedade e do espírito coletivo que organiza e da forma a um fluxo da experiência comunitária.

 

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1 Universidade Federal de Campina Grande, UFCG, Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido, CDSA, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, PROFSOCIO. Correio electrónico: medeirosrosana01@gmail.com

2 Universidade Federal de Campina Grande, UFCG, Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido, CDSA, Unidade Acadêmica de Ciências Sociais, UACIS, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, PROFSOCIO. Correio electrónico: wallace.ferreiradesouza@gmail.com

3 Nascida Gloria Watkins e adotou o nome de sua avó e pede que o usem em minúsculo.

4 (Ibid, p. 2).