Nova arquitetura da participação: implicações para os movimentos sociais na conquista de direitos e democratização da sociedade

Nueva arquitectura de la participación: implicaciones para los movimientos sociales en el logro de los derechos y la democratización de la sociedad

A new architecture of participation: implications of social movements on the conquest of rights and democratization of society

Fecha de recepción: 1 de mayo de 2020 / Fecha de aprobación: 15 de julio de 2020

Orlandil de Lima Moreira1

 

Resumo

Nos últimos anos, o debate sobre a participação cidadã tem alcançado relevância nas análises sobre a democratização da sociedade e o papel da sociedade civil e dos movimentos sociais acerca da incidência política na gestão pública. O presente artigo tem o objetivo de averiguar como os movimentos sociais têm contibuido para o fortalecimento da cidadania e a conquista de direitos, a partir de sua inserção nos espaços de participação na esfera local. A análise desse processo político tomou como referência o debate sobre a democracia participativa, a cidadnia ativa e a esfera pública, conceitos que têm se destacado e se incorporado ao debate sobre os movimentos sociais e na arquitetura da participação social. Metodologicamente, o estudo tem um caráter qualitativo, realizado por meio da pesquisa documental e a observação participante das ações desenvolvidas pelos movimentos sociais no município de Guarabira, no estado da Paraíba/Brasil. Os resultados da pesquisa evidenciaram uma diversidade de ações coletivas protagonizadas pelos movimentos sociais articulados pelo Fórum, as quais apresentaram possibilidades para o exercício da cidadania ativa, com participação nos espaços de gestão das políticas públicas locais. Os limites dessse processo foram explicitados pela impermeabilidade do poder local à democratização dos espaços decisórios e a efetivação das demandas das organizações populares no orçamento público.

Palavras-chave: Participação, movimentos sociais, direitos, políticas públicas.

 

 

Resumen

En los últimos años, el debate sobre la participación ciudadana ha ganado relevancia en el análisis de la democratización de la sociedad y el papel de la sociedad civil y de los movimientos sociales con respecto al impacto político en la gestión pública. Este artículo tiene como objetivo descubrir cómo los movimientos sociales han contribuido al fortalecimiento de la ciudadanía y la conquista de los derechos, a partir de su inserción en espacios de participación en el ámbito local. El análisis de este proceso político tomó como referencia el debate sobre la democracia participativa, la ciudadanía activa y la esfera pública, conceptos que se han destacado y se han incorporado al debate sobre los movimientos sociales y en la arquitectura de la participación social. Metodológicamente, el estudio tiene un carácter cualitativo, realizado a través de la investigación documental y la observación participante de acciones desarrolladas por movimientos sociales en el municipio de Guarabira, en el estado de Paraíba / Brasil. Los resultados de la investigación mostraron una diversidad de acciones colectivas llevadas a cabo por los movimientos sociales articulados por el Fórum, que presentaron posibilidades para el ejercicio de una ciudadanía activa, con participación en los espacios de gestión de las políticas públicas locales. Los límites de este proceso se explicaron por la impermeabilidad del poder local a la democratización de los espacios de toma de decisiones y la realización de las demandas de las organizaciones populares en el presupuesto público.

Palabras clave: Participación. Movimientos Sociales. Derechos. Políticas Públicas.

 

Abstract

In the last years, the debate on citizen participation has reached relevance in the analyses about the democratization of society and the role of civil society and social movements regarding the political impact on public management. The present paper aims to investigate how social movements have contributed to the strengthening of citizenship and the conquering of rights, starting from their insertion in spaces of participation in the local sphere. The analysis of this political process has as reference the debate about participatory democracy, active citizenship and the public sphere, which concepts have been highlighted and incorporated into the debate on social movements and in the architecture of social participation. Methodologically, the study has a qualitative character, made through documentary research and participant observation of actions developed by social movements in the municipality of Guarabira, in the state of Paraíba / Brazil. The research results showed a diversity of collective actions carried out by the social movements articulated by the Forum, which presented possibilities for the exercise of active citizenship, with participation in the management spaces of local public policies. The limits of this process were explained by the impermeability of local power to the democratization of decision-making spaces and the realization of the demands of popular organizations in the public budget.

Keywords: Participation. Social movements. Rights. Public policy.

 

Introdução

A década de 1990, no Brasil, inicia com mudanças institucionais importantes no cenário político, decorrente da promulgação da nova Constituição, em outubro de 1988, a qual apresenta para a sociedade uma nova institucionalidade, colocando, pela primeira vez, na vida política brasileira, a democracia semidireta ou participativa como um dos princípios fundamentais da República. Em consequência desse movimento de ampliação da participação social, destacamos a aprovação da Lei Orgânica da Saúde que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), representando, do ponto de vista da participação, um marco na democracia participativa e na conquista de direitos.

Na medida em que o Brasil vive um processo de institucionalização da democracia direta, com ampliação da participação cidadã nas decisões políticas, que passa a não restringir a participação apenas aos representantes eleitos de forma direta, vai se configurando o que se denominou chamar de democracia participativa, que atribui aos espaços públicos institucionais um destaque nesse contexto, não diminuindo o valor das esferas não institucionais que fazem parte do mecanismo de participação social tradicional, o qual alimenta a democracia participativa, como revelam estudos nesse campo.

Trata-se, portanto, de mudanças políticas institucionais que, somadas ao acúmulo organizativo dos movimentos sociais, que desde a década de 1980 vinham desenvolvendo um papel fundamental na conquista de direitos e na construção da democracia, indicam para a sociedade brasileira a crise da democracia representativa e a necessidade da ampliação dos processos decisórios na gestão da coisa pública.

Ainda nessa década emergem experiências nos governos populares, criando canais de interlocução da sociedade com o Estado, em especial no âmbito do poder local (OLIVEIRA, 2004), as quais trazem mudanças importantes em termos de experiências democráticas, mesmo que não apresentem ainda as características institucionais delimitadas. São essas experiências que mais tarde vão se constituir no que se denominou de “orçamento participativo”, inovação política que ganhou destaque não apenas no Brasil, mas em vários outros países (Teixeira, 1991; Ribeiro; Gazia, 2003).

A partir desse cenário político que emerge no Brasil, elegemos como problemática de investigação a mudança que estava ocorrendo na ação dos movimentos sociais, com participação em novos espaços políticos institucionais, caracterizados por uma interlocução entre Estado e sociedade civil, a qual exigia uma iniciativa propositiva por parte das organizações populares e movimentos sociais na construção de políticas públicas. Realidade que nos levou a problematizar qual o alcance da ação desses sujeitos coletivos para a democratização da gestão pública local, ampliação de direitos e fortalecimento da cidadania nesse novo contexto político.

O presente artigo tem o objetivo de averiguar a ação dos movimentos sociais e suas implicações para a ampliação de direitos e a democratização da gestão pública local, a partir de sua inserção nos espaços de participação social. O estudo é resultado de investigação sobre a ação dos movimentos sociais que temos realizado na região do Brejo paraibano, território onde está situado o município de Guarabira, no estado da Paraíba. A pesquisa tem um caráter qualitativo, realizada a partir de fontes documentais produzidas pelo Serviço de Educação Popular (SEDUP)2, a exemplo de materiais pedagógicos utilizados nos processos formativos com lideranças das organizações populares, relatórios da memória de reuniões e documentação das ações dos movimentos sociais. A observação participante também foi utilizada como técnica de pesquisa, com a participação e a observação em atividades do Fórum das Entidades e Movimentos Sociais e sessões na Câmara Municipal, relativas à incidência política do Fórum no orçamento público.

O artigo está organizado em cinco partes. Na primeira, a qual estamos desenvolvendo, apresentamos a problemática geral do artigo, destacando o contexto político em que ocorrera a ação dos movimentos sociais e a metodologia da pesquisa. Na segunda parte, situamos o debate sobre a participação política e a construção de uma esfera pública, destacando a simbiose na relação entre o público e o privado na vida política brasileira. A terceira parte corresponde à análise da ação dos movimentos sociais, com a emergência de novos espaços de participação institucional. Na quarta colocamos o debate sobre a ação dos movimentos sociais no âmbito local, destacando a incidência política no Fórum das entidades e organizações e movimentos no contexto local. Por fim, as considerações finais onde apontamos alguns desafios da ação dos movimentos sociais, os limites e as possibilidades na interlocução da sociedade civil com o Estado para ampliação da participação popular e a construção de direitos.

 

Esfera pública e participação política

Ao longo da história política do Brasil, o caráter privado e centralizador do Estado fez com que vivenciássemos a ausência de uma dimensão pública. A ordem pública não se constituiu em uma realidade consolidada, tivemos sempre uma sociedade marcada pela contradição entre as esferas pública e privada, fragilizando a construção de uma visão republicana (Wanderley, 1991).

O poder patrimonial foi sempre uma característica em nossa prática política, em especial no âmbito local (Holanda, 1983; Leal, 1975). Mesmo com a modernização da sociedade, o tradicional permaneceu: o moderno foi sendo mesclado com o tradicional. Na visão de Raichelis, “as oligarquias políticas no Brasil colocaram a seu serviço as instituições da moderna dominação política, submetendo a seu controle todo o aparelho do Estado” (Raichelis, 1998, p. 68). Como consequência desse processo, tivemos por todo esse tempo a não efetivação de uma participação ampliada da sociedade civil nas ações do Estado, colocando em questão a conquista de direitos, elemento fundamental para a construção da cidadania e uma sociedade democrática.

A relação do Estado com a sociedade civil foi sempre distanciada. O Estado sempre teve pouca interlocução com o conjunto da sociedade, ocorrendo apenas com setores privilegiados, deixando de fora a grande maioria da população. A afirmação de Raichelis ilustra bem essa realidade:

Na particularidade da formação social brasileira, os setores dominados da sociedade civil jamais tiveram força de veto sobre as decisões do poder estatal. São praticamente inexistentes os movimentos em que seria possível afirmar que as massas populares, ou algum dos seus setores, tenham conseguido participar do processo político com efetiva autonomia (Raichelis, 1998, p. 69).

Nesse contexto de frágil participação social nas decisões da coisa pública, o estatal e o privado mesclam-se, passando a desenvolver na sociedade um processo de indistinção entre o público e o privado, impedindo o surgimento de uma esfera pública. Dessa forma, os interesses privados assumem precedência sobre o interesse público, configurando a falta de uma dimensão efetivamente pública, como sugere a análise do grupo de estudos sobre a construção democrática da UNICAMP.

A indistinção entre o público e privado, subjacente a uma concepção oligárquica da política, onde os interesses privados assumem prevalência sobre o interesse público, está no centro de uma matriz básica que continua presidindo a configuração da sociedade brasileira, e em relação à qual as instituições políticas da democracia representativa liberal se acomodaram sem rupturas significativas (GECD, 1988/89, p. 47).

Essa situação de simbiose entre a esfera pública e a esfera privada em nossa história política já foi estudada por vários autores, os quais analisaram momentos históricos anteriores que apontaram a influência do domínio rural presente em nossa formação social como elemento fundamental para o entendimento da sociabilidade política.

Um estudo significativo que ajuda a compreender essa realidade é o de Sérgio Buarque de Holanda (1983). Nesse estudo, o autor desenvolve uma reflexão que aponta a influência que teve a família do meio rural como definidora das relações políticas engendradas na sociedade brasileira. A influência da família rural colonial era tão forte, que perseguia os indivíduos fora de casa, na vida pública, política, social, ocorrendo uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família (REIS, 1999, p. 128). Em sua análise, Buarque enfatiza o peso e a importância das relações familiares na constituição das relações políticas e sociais, e a ausência de espaço público para as decisões públicas.

Outro estudo que também retrata essa realidade é o de Victor Nunes Leal (1975), no qual ele analisa o coronelismo presente na Primeira República, apresentando a influência que teve o poder privado nos processos políticos nesse período histórico, através da figura do coronel, como bem relata a seguinte afirmação: “Significando o isolamento, ausência ou rarefação do poder público, apresenta-se o ‘coronelismo’, desde logo, como certa forma de incursão do poder privado no domínio político [...]” (Leal, 1975, p. 251).

Nesse período histórico marcado pelo coronelismo, a questão da privatização da política é exemplar. O coronel - e chefe político - tinha todos os poderes para interferir em vários aspectos da vida social e política, desde resolver as desavenças pessoais entre seus moradores até interferir nas decisões públicas do município. Ou seja, através de seu domínio e influência no meio rural, exercia o controle dos votos dos trabalhadores rurais, como garantia do seu prestígio e continuidade da influência do poder privado nos processos políticos, expressando, assim, a completa falta de separação entre a esfera pública e privada.

Reflexão realizada por um grupo de estudo da UNICAMP, em outro momento histórico, também observa essa realidade, ao constatar o domínio do privado sobre o público no contexto político brasileiro. “Os homens que detinham funções públicas não construíram parâmetros diferenciados para suas ações no âmbito público, simplesmente transferiram para ele os parâmetros do domínio privado” (GECD, 1988/89, p. 46).

Nesse sentido, é possível afirmar que a não separação entre essas duas esferas e, consequentemente, a ausência de uma esfera pública pode ser apontada como um dos aspectos fundamentais para o não aprofundamento do processo democrático, de forma a não termos uma publicização das decisões políticas que afetam a coletividade. Em outros termos, nossa tradição política foi marcada pela ausência de regras e procedimentos democráticos na gestão da coisa pública. O caráter excludente e centralizado do Estado presente nos vários momentos políticos inibiu a participação social, não possibilitando que fosse construído espaço público para o “diálogo político decisório”, o qual pudesse ser palco das decisões do Estado e envolvesse os diversos interlocutores presentes na sociedade.

A cultura política se caracterizou, ao longo de nossa história, por uma ausência de espaços de participação, onde os vários atores sociais pudessem expressar suas opiniões e intervir nos processos políticos decisórios. O Estado brasileiro foi sempre sustentado por um pacto conservador, que não incluiu em sua prática política a participação democrática, o que apresentou como consequência para a nossa sociabilidade a não ampliação da cidadania política e social da maioria da população (Fiori, 1995, p. 145).

A análise de Francisco de Oliveira é significativa dentro dessa perspectiva para explicitar essa problemática, quando identifica a inexistência de uma esfera pública para a definição e repartição dos gastos públicos. Na sua visão, a falta de um espaço para a tomada de decisão referente aos fundos públicos facilita a manipulação desses recursos pelas elites econômicas e políticas. Nas palavras de Oliveira, a existência de uma esfera pública “nega à burguesia a propriedade do Estado e sua dominação exclusiva” (Oliveira, 1998, p. 39-40). Nesta mesma direção, o autor acrescenta, ainda, que existe uma imbricação entre a construção de uma esfera pública e a consolidação de um processo democrático, expondo a seguinte afirmação:

O que é fundamental, na constituição da esfera pública e na consolidação democrática que lhe é simultânea, é que esse mapeamento decorre do imbricamento do fundo público na reprodução social em todos os sentidos, mas sobretudo criando medidas que medem o próprio imbricamento acima das relações privadas (Oliveira, 1998, p. 40).

Na sua interpretação sobre o processo político brasileiro, Martins também nos apresenta uma significativa contribuição. Em sua análise, revela-nos também uma relação sem limite entre o público e o privado, presente ao longo de nossa história política e social. Procura explicitar com sua reflexão que, para explicar os acontecimentos recentes, é fundamental ter em mente a relação entre o público e o privado presente na formação do Estado brasileiro ao longo de nossa história política (Martins, 1994, p. 21). Tendo como referência essa perspectiva, aponta o clientelismo como um dos traços fundamentais dessa imbricação entre esses dois espaços, reafirmando que essa situação ainda permanece até os dias atuais, apesar do processo de modernização da sociedade. Na sua visão, a interpretação de que o clientelismo desapareceu está equivocada. Contrapondo-se a essa posição, faz a seguinte afirmação:

Essa interpretação parece-me equivocada. De um lado porque o clientelismo político não desapareceu. Ao contrário, em muitas regiões do País ele se revigorou, embora mudando de forma, praticado por uma nova geração de políticos de fachada moderna (Martins, 1994, p. 23).

Essa prática política incorporada em nossa sociedade nos indica, portanto, uma cultura de tutela que impediu e ainda impede uma ampliação da participação e, consequentemente, a construção da cidadania. Para Martins, a existência de uma cultura de tutela e dominação aparece como um dos traços fundamentais de nossa sociedade, sendo o controle do voto um aspecto importante dentro desse processo. Nesse campo, o clientelismo se apresenta com bastante vigor e não se realiza apenas através da compra de votos dos pobres pelos ricos: essa relação ocorre em outras escalas e espaços da vida social, como sugere Martins:

De fato, as indicações sugerem que o clientelismo político sempre foi e é, antes de tudo, preferencialmente uma relação de troca de favores políticos por benefícios econômicos, não importa em que escala. Portanto, é essencialmente uma relação entre os poderosos e os ricos e não principalmente uma relação entre ricos e pobres (Martins, 1994, p. 29).

Essa argumentação de Martins sobre o clientelismo como troca de favores é coerente com a realidade política, pois o direito ao voto só veio se estender a todos os cidadãos recentemente, com a promulgação da Constituição em 1988, que assegurou o direito de votar aos analfabetos. A grande maioria da população sempre foi excluída desse exercício da cidadania; e, além do mais, nem todos votavam em todas as eleições, como indica nessa outra argumentação: “[...] a amplitude do voto era regulada pelo patrimônio de cada um, pois só os mais ricos votavam em todas as eleições [...]”. Ou seja, a depender de seu patrimônio, o cidadão votava em todas as eleições: “[...] os senhores de posses modestas votavam apenas nas eleições municipais” (Martins, 1994, p. 30).

Nesse contexto, o município era a instância com maior número de eleitores, os quais exerciam a capacidade de legitimar a ação política, apesar de a grande maioria não ter direito ao voto: “[...] os excluídos do direito de voto estavam incluídos na tutela dos potentados rurais, como clientes e protegidos, inclusive no que se refere às questões propriamente políticas” (Martins, 1994, p. 28).

Com a crise do regime oligárquico na década de 30, tornou-se quase que inevitável a participação das classes populares na política, por ter uma forma de tutela inspirada agora pelo populismo. Ou seja, a incorporação política dos trabalhadores continuou se dando de forma subordinada, baseada em relações personalizadas, através de lideranças políticas, como bem observou Francisco Weffort em seu estudo sobre o populismo no Brasil (Weffort, 1980, p. 67-68).

Apesar dessa aproximação dos setores populares com a política, continuou prevalecendo a mesma visão do que é a política visto que não se realizou uma participação dos setores subalternos de forma autônoma. A distância entre a política e a maior parte da população continuou, pois não se constituíram ao longo desse percurso histórico condições políticas, econômicas e sociais para o desenvolvimento de uma participação autônoma que possibilitasse a construção de uma cidadania efetiva.

A concepção que continuou predominando na política foi de cunho oligárquico, apresentando como principal característica a exclusão dos setores subalternos dos processos políticos. Apesar das mudanças que vivenciamos ao longo de nossa história, a política continua sendo percebida pela maioria da população como um espaço privilegiado das elites, dos “doutores” e dos profissionais da política. Não se constituiu na sociedade brasileira uma visão de política com valores democráticos, tendo a participação como elemento fundamental para o seu desenvolvimento. Prevaleceu, portanto, uma visão privatista, que vem nos acompanhando ao longo de nossa história política (GECD, 1998/1999).

Dentro dessa perspectiva de controle e dominação por parte do Estado, a cidadania no Brasil não se construiu de forma autônoma, foi desenvolvida sob o controle do Estado, tendo como marca desse processo a ambiguidade dos direitos. Ao mesmo tempo em que o Estado reconhecia determinados direitos, exercia o controle sobre os trabalhadores, constituindo o que Santos denominou de “cidadania regulada”. Ou seja, são cidadãos aqueles indivíduos que ocupam profissões “reconhecidas e definidas em lei” (Santos, 1987, p. 68).

Diante dessa realidade de centralização e autoritarismo do Estado, a esfera pública não se constituiu enquanto um espaço de participação e decisão pública, no qual os diversos atores presentes na sociedade pudessem opinar e interferir nos processos decisórios. Ou seja, a esfera pública foi incorporada pelo Estado, de modo que passou a ser confundida como um espaço estatal, dando margem para que prevalecesse nesse processo uma visão estatista da política (GECD, 1998/1999, p. 49).

 

Ampliando a participação e a construção de direitos: em busca de uma cidadania ativa

Nos últimos anos vêm ganhando visibilidade na sociedade brasileira, em especial no âmbito dos movimentos sociais, as práticas participativas nos espaços públicos, fazendo emergir uma cidadania ativa (BENEVIDES, 1991), processo que teve início no anos de 1970, com a retomada da organização popular e que vai se consolidando ao longo dos anos (DOIMO, 1995). Tal realidade tem chamado a atenção da intelectualidade e estudiosos, no sentido de analisar e comprender tais práticas, as quais se proliferam na sociedade no período pós-1970, afirma Doimo.

Se já é bastante conhecida a surpreendente emergência de uma multiplicidade de movimentos sociais populares no Brasil, pós-70, ainda não está suficientemente claro nem o modo como se reproduziram de forma relativamente articulada ao longo de aproximadamente quinze anos (1975-1990), nem tampouco as conexões ativas que lhes atribuíram certa qualificação específica do ponto de vista ético-político (Doimo, 1995, p. 73).

A participação dos movimentos sociais nos espaços públicos institucionais traz à tona novas demandas para sua atuação na sociedade, passando a exigir novas habilidades e capacidades de suas lideranças. Nesse contexto, a participação cidadã tem se apresentado como prática fundamental para a ampliação do processo de democratização do poder local e controle de suas ações no campo das políticas públicas, abrindo possibilidades para a conquista e ampliação de direitos. Estudo realizado por Abreu e Amâncio revela essa realidade, trazendo um posicionamento sobre o referido fenômeno:

As possibilidades do exercício do controle social, pelos movimentos sociais, foram sendo ampliadas à medida que esses atores coletivos foram ganhando espaços e importância no cenário político, isto por meio de pressão frente às instituições políticas, sobretudo os poderes municipais (Abreu; Amâncio, 2018, p. 49).

Apesar desse significado, os espaços e mecanismos institucionais que foram implementados ao longo do período de redemocratização, ao mesmo tempo em que possibilitaram novas relações entre governo e sociedade civil no âmbito local, têm apresentado muitos limites para o controle social da gestão pública. A falta de vontade política dos governos locais assim como a frágil organização da sociedade civil são elementos desafiantes a serem trabalhados no sentido de possibilitar uma mudança na relação do poder local com a sociedade civil, de forma a construir uma cidadania participativa, reflexo de uma visão política marcada pelo patrimonialismo e clientelismo que resistem à ação política, já evidenciado em outros estudos (Romão, 2015).

As experiências participativas que vêm se desenvolvendo, principalmente por iniciativa dos movimentos sociais, representam uma mudança importante, que convive com uma resistência por parte dos governos locais. Portanto, requer um investimento em capacitação e articulação dos atores locais para um deslocamento na correlação de forças para uma efetiva participação nos espaços públicos. As ações de educação popular desenvolvidas pelos coletivos de movimentos sociais e as organizações não governamentais que prestam assessorias aos movimentos populares assumem um papel importante ao contribuir com a capacitação dos sujeitos para a participação na esfera pública, na perspectiva de uma cidadania ativa no processo de incidência política.

As mudanças institucionais, tendo como marco desse processo a promulgação da Constituição de 1988, abre possibilidade para a participação cidadã nas políticas públicas, colocando no debate a problematização sobre a exclusividade da democracia representativa no sistema político brasileiro, o que tem suscitado a insatisfação dos representados em função do comportamento dos representantes que rompem a confiança, ao mesmo tempo em que limita a participação política dos cidadãos nos processos decisórios (Silva, 2016; Gaspardo, 2018).

As mudanças institucionais colocaram em foco o orçamento público municipal como parte desse processo de alteração política, configurando uma nova forma de fazer e incidir nas políticas públicas na esfera local (Avritzer, 2016). Em várias cidades, organizações da sociedade civil do campo popular (pastorais, associações de moradores, movimentos sociais, sindicatos, ONGs etc.), articulam-se para incidir no processo de elaboração do orçamento público, seja na apresentação de demandas, seja no controle social.

Esse processo de transparência e democratização da coisa pública é resultado de um movimento da sociedade civil, que se transforma numa das principais motivações para as organizações e movimentos sociais organizarem os Fóruns populares para acompanhamento do orçamento público no âmbito local a partir dos anos de 2000, tendo em vista o interesse pela participação cidadã no ciclo orçamentário ser muito difícil, ficando restrito àqueles municípios em que foi instituído o Orçamento Participativo.

As experiências de orçamento participativo iniciadas no final da década de 1980, tendo como experiência de maior visibilidade a do município de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, expandiram-se para centenas de municípios brasileiros. Estudos relatam que, até o ano de 2000, mais de 140 cidades aderiram ao orçamento participativo, em cidades pequenas, médias e grandes, em áreas com características rurais e urbanas, sendo a maior quantidade em áreas urbanas e cidades médias e grandes (Ribeiro; Grazia, 2003).

Apesar da sua expansão e visibilidade internacional, a maioria dos municípios brasileiros não aderiu a essa proposta. Predominou e predomina o processo de elaboração orçamentária de forma centralizada e sem a participação cidadã, mesmo que a nova Constituição assegure a participação no planejamento da cidade. Para a institucionalização do orçamento participativo seria necessária uma iniciativa do Poder Executivo e aprovação pelo Poder Legislativo.

Frente a essa realidade presente na maioria dos municípios brasileiros, a iniciativa de organização de Fóruns Populares para a participação cidadã surge como uma alternativa para que os cidadãos possam incidir no processo de elaboração do orçamento público (SEDUP; APP; CENTRAC; PERIFERIA, 2014). São experiências participativas que podem ser encontradas não apenas em grandes cidades e capitais onde existe um conjunto de organizações da sociedade civil com um maior grau de articulação e mobilização social.

Contrariando uma realidade adversa à participação, marcada por fortes traços do coronelismo, clientelismo, patrimonialismo e, portanto, pela impermeabilidade do poder local para a democratização e a transparência da gestão pública, organizações da sociedade civil de cidades pequenas e médias têm forçado o poder local a abrir canais de diálogo com a sociedade civil, fazendo emergir uma nova relação entre Estado e Sociedade, o que se configura na descontinuidade no modo tradicional de fazer política. Nesse contexto em que a participação é elemento central no processo de democratização da gestão pública, o desafio é quebrar a visão tradicional de administração pública predominante na esfera local, com a ampliação do exercício da cidadania, apontando para novos significados da participação para além do sentido jurídico.

 

 

Novos tempos e espaços para a participação: a ação dos movimentos sociais de Guarabira − PB

Do ponto de vista de sua localização geográfica, o município de Guarabira se situa no estado da Paraíba, é a nona cidade mais populosa do estado, com uma população de 58.492 habitantes (IBGE, 2018).

 

Figura 1. Mapa do Estado da Paraíba

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Fonte: http://www.guararteonline.jex.com.br/fotos/guarabira

 

Na ótica sociopolítica, desde a década de 1980, tem se constituído como uma referência no processo de mobilização popular na região do brejo paraibano, tendo como marca a presença de vários atores sociais, com destaque para as pastorais sociais populares da Igreja Católica, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), movimentos populares de bairros, sindicatos, movimentos de mulheres e Organizações não governamentais (ONGs), no cenário político local.

A partir do final dos anos de 1970, impulsionado pela ação da Igreja Católica, por meio da ação pastoral vinculada à Teologia da Libertação, emerge um processo de retomada das organizações populares, inicialmente de forma subterrânea em função do sistema político autoritário por parte da ditadura militar. Com a abertura do regime foi ganhando visibilidade, dando continuidade com o fim da ditatura militar em 1985 e a instalação de um período de transição democrática, denominado de “Nova República”.

No início da década de 1980, várias lutas sociais eclodiram na região, destacando-se a luta pela terra, a renovação do sindicalismo rural, os movimentos de mulheres (Tosi, 1988; Bertolazzi, 1989; Bassanezi, 1994). Na cidade, os movimentos populares de moradores de bairros populares, as pastorais sociais e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Nesse período, um conjunto de atores sociais coletivos foi se constituindo e se colocando na cena política. A luta pelo direito à posse e uso da terra para os camponeses e camponesas, assim como a luta por melhores condições de trabalho e salário, destacaram-se nesse período, tendo o sindicato como principal instrumento de organização. Na cidade, a luta pelos direitos se deu no campo da cidadania e das políticas sociais, reivindicando acesso às políticas públicas que propiciassem uma melhor qualidade de vida. Movimentos identitários também fizeram parte desse cenário, com destaque para o movimento de mulheres, seja no campo ou na cidade, com a organização do Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo Paraibano (MMT-Brejo)

Nesse contexto, o processo de mobilização ganhou força política na região, os movimentos sociais tiveram um papel importante na participação no movimento pela constituinte, sendo protagonista nas ações de mobilização para a elaboração da Constituição pelo Congresso constituinte, com envolvimento nas diversas iniciativas populares para a inclusão de propostas vindas da sociedade e enviadas aos constituintes, acompanhadas de abaixo-assinado com milhares de assinaturas, para serem transformadas em emendas populares. Ação que se destacou e mobilizou o conjunto de movimentos sociais em todo o Brasil e setores progressistas da sociedade (Michilis, 1989).

Após a aprovação da “Constituição Cidadã”, como ficou conhecida na literatura política, um novo cenário começa a ser desenhado, orientado por uma institucionalidade política democrática, como sugere o art. 1º, parágrafo único da CF: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A democracia representativa e a democracia direta e semidireta como formas de participação política, passam a ser parte do sistema político brasileiro.

A partir dessa nova institucionalidade, criaram-se as condições para o surgimento de vários espaços de participação institucional, a exemplo dos conselhos municipais gestores de políticas públicas e conselhos de direitos. Realidade que fez emergir um novo campo de ação para os movimentos e organizações populares, na luta pelos direitos e o fortalecimento da cidadania, com ênfase na participação popular, como revela estudo realizado por Alves e Souza sobre a democracia participativa e conselhos gestores (Alves; Souza, 2018).

A presença de representantes dos movimentos sociais nos conselhos municipais foi uma realidade em todo o Brasil, em particular no âmbito da saúde, educação, direitos das crianças e adolescentes à assistência social. Nos seis Conselhos existentes em Guarabira até o ano de 2002, a saber: Conselho Municipal de Assistência Social, Conselho de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho de Saúde, Conselho de Agricultura, Conselho de Educação (Fundef) e Conselho Tutelar, é marcante a presença de representantes de organizações populares como conselheiros nos respectivos conselhos (Moreira, 2002).

Mesmo com uma realidade marcada por um modo tradicional de fazer política, com hegemonia das relações privadas numa simbiose entre o público e o privado, e uma administração pública em que o poder executivo tem se revezado entre dois grupos políticos, ora pertencentes ao mesmo partido, ora a partidos diferentes, a depender da conjuntura política regional, mesmo assim, foram sendo criados os espaços institucionais de participação em decorrência da ação dos movimentos sociais, que sempre pautaram essa demanda na agenda política do município. Realidade que não se restringia ao município estudado, era parte de uma realidade política de forma mais ampla, como indica estudo realizado por Romão sobre os conselhos gestores, os quais denomina de instâncias e mecanismos de participação institucional, apontando alguns limites de seu funcionamento, em função de um contexto político permeado por uma cultura política “autoritária” e “clientelista” presentes nos agentes estatais e nos partidos políticos tradicionais (Romão, 2015, p. 36).

O caso aqui apresentado, o qual serve de referência empírica para a nossa análise, em que analisamos a ação dos movimentos sociais por direitos, cidadania e pela democratização da sociedade, aconteceu na década de 2000. Trata-se de uma rede de movimentos sociais e organizações populares da sociedade civil, denominada de Fórum das Entidades e Movimentos Sociais. Como sugere Scheren-Warren (1993), essa forma de organização por parte dos movimentos sociais foi muito presente a partir da década de 1990.

A iniciativa de criação do Fórum teve início em 2002, com o objetivo de contribuir com a democratização e a transparência do processo de elaboração do orçamento público, tendo em vista a luta por direitos através do acesso a políticas públicas e a realização do controle social por parte da sociedade civil. A experiência do “Fórum Cidade”, como ficou conhecido, apresenta uma contribuição importante para se pensar as formas de participação após a promulgação da Constituição de 1988, como revela Avritzer: “A participação social tem sido uma das estrelas da democratização brasileira. O primeiro campo componente responsável por seu avanço foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, com as legislações infraconstitucionais que lhe seguiram” (Avritzer, 2016, p. 49).

No nível local, essa participação institucional ganha uma dimensão mais tensionada tendo em vista a característica do poder local, como já foi explicitado. A presença desses espaços, com os limites já apresentados por alguns estudos (Avritzer, 2016), representa um processo de descontinuidade das relações políticas tradicionais baseadas no clientelismo e favoritismo, pela possibilidade de diálogo e disputa que se realiza no interior dos espaços institucionais.

A criação do Fórum Cidade foi motivada pela participação dos representantes dos movimentos sociais nos conselhos municipais, tendo em vista os limites que começaram a observar na definição dos gastos públicos, apenas com participação nos conselhos. O Fórum surge, portanto, com o objetivo de ampliar o processo de incidência política dos movimentos sociais na definição e controle social do orçamento público na esfera local. A partir desse envolvimento, a temática do orçamento público ganha importância e passa a fazer parte das reuniões de estudo, oficinas e seminários, como parte do processo de capacitação dos conselheiros para sua atuação nos seus respectivos espaços de participação.

A partir dessa demanda, desencadeou-se um processo de discussão e capacitação, envolvendo as diversas organizações e movimentos sociais com o objetivo de desenvolver uma ação coletiva para intervir de forma propositiva na elaboração de políticas públicas no âmbito do orçamento público municipal. O grupo inicial foi formado por representantes de diversas organizações populares que decidiram acompanhar e participar da elaboração do orçamento público do município, apresentando propostas ao Poder Executivo para serem incorporadas às leis orçamentárias. A partir dessa ação coletiva foi concretizada a ideia de criação do Fórum de Entidades e Movimentos Sociais de Guarabira.

O relato das primeiras ações do Fórum se torna importante na presente análise, no sentido de mostrar a impermeabilidade do poder local aos processos participativos, como já relatado. Nosso objetivo aqui é apenas destacar os primeiros passos e dificuldades encontradas nesse processo de participação social.

 

Figura 2. Reunião de capacitação do Fórum das Entidades e Movimentos Sociais sobre orçamento público na sede do SEDUP, em 2015

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Fonte: SEDUP.

 

A primeira iniciativa do coletivo, enquanto ator político no contexto local, foi solicitar uma audiência com o Poder Executivo do município, na expectativa de abrir um canal de diálogo entre sociedade civil e governo, e assim iniciar a discussão sobre a proposta de participação da população na elaboração do orçamento do município, tendo em vista que não existia orçamento participativo, como já ocorria em muitos municípios brasileiros desde a década de 1990 (Ribeiro; Grazia, 2003).

Frente à impermeabilidade do poder executivo local à participação dos cidadãos na gestão pública, a iniciativa não logrou sucesso. Diante desse resultado, o grupo resolveu seguir outro caminho, e partiu para um diálogo com o Poder Legislativo. A partir dos conhecimentos acumulados nas oficinas, seminários e discussões, o coletivo resolveu se articular com um vereador pertencente à bancada de oposição, para que ele intermediasse a apresentação das propostas elaboradas pelos representantes dos movimentos sociais, apresentando como emenda na audiência pública de discussão da proposta orçamentária encaminhada pelo Poder Executivo ao plenário da Câmara.

Diante da composição da Câmara Municipal, com hegemonia dos vereadores da bancada da situação, as emendas apresentadas à Lei Orçamentária Anual (LOA), pelo vereador da oposição, foram rejeitadas pela maioria da bancada, mesmo com a presença de várias lideranças das organizações populares na galeria da Câmara, acompanhando o processo de votação pelo Poder Legislativo.

No ano seguinte, em 2003, após avaliação realizada pelo Fórum da ação de incidência realizada em 2002, o grupo organiza uma nova estratégia. Dessa vez, além da participação do Fórum, participaram também os conselheiros dos conselhos municipais e do conselho tutelar, dando uma maior legitimidade ao movimento junto ao Poder Executivo e Legislativo.

 

 

Figura 3. Reunião com representantes do Fórum das Entidades e Movimentos Sociais de Guarabira com vereadores e secretários municipais para discussão e apresentação de emendas para o orçamento público, em 2015

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Fonte: SEDUP.

 

Após a realização de reuniões com os conselheiros e de realização de plenárias populares com representantes de organizações e movimentos sociais, para elaboração de propostas a serem apresentadas no momento de elaboração do orçamento público, de acordo com o calendário do ciclo orçamentário, o grupo apresentou as sugestões e propostas elaboradas nas plenárias populares ao Poder Executivo, para que fossem incorporadas à proposta de Lei a ser enviada ao Poder Legislativo, iniciativa que não logrou êxito.

No momento de realização das audiências públicas no plenário da Câmara, as mesmas propostas foram apresentadas através de um representante do Poder Legislativo. Nessa ocasião, as propostas foram defendidas em uma tribuna livre na Câmara Municipal por representantes da sociedade civil, quando apresentaram as justificativas e a necessidade de as propostas serem incluídas no orçamento. Mais uma vez as emendas foram vetadas pelos vereadores da bancada de sustentação do governo municipal.

 

 

Figura 4.Reunião com representantes do Fórum das Entidades e Movimentos Sociais de Guarabira na Câmara Municipal dos vereadores, em 2015 

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Fonte: SEDUP.

 

Em 2004, o processo deu continuidade de forma mais ampla, envolvendo outras organizações populares do município, passando a ganhar uma maior visibilidade no cenário político local. Nesse ano, a participação do Fórum começou no momento de elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Em audiência com representantes do Poder Executivo foram apresentadas as sugestões elaboradas pelo Fórum e pelos conselhos da assistência social, de direitos da criança e do adolescente e o conselho tutelar.3 Após as negociações com o Poder Executivo, as propostas dos representantes da sociedade civil foram aceitas, diminuindo apenas o valor financeiro para a execução das ações.

Na sessão na Câmara Municipal para aprovação da LOA, os representantes das organizações populares e os conselheiros representantes da sociedade civil estiveram presentes na galeria da Câmara acompanhando o processo de votação. O resultado desse movimento cidadão foi a aprovação das propostas pelo Legislativo, passando a ser incorporadas ao orçamento para o exercício do ano 2005. Com esse resultado, o desafio seguinte passou a ser o cumprimento por parte do Poder Executivo em autorizar a liberação dos recursos para que as referidas propostas fossem executadas.

Para surpresa da sociedade civil, principalmente das organizações populares participantes do Fórum das Entidades e Movimentos Sociais de Guarabira, as propostas negociadas e aprovadas pelos poderes Executivo e Legislativo não constaram na versão final da LOA de 2005, homologada pelo Poder Executivo, descumprindo o que tinha sido acordado e aprovado pelos vereadores em sessão na Câmara. Com essa decisão, a prefeita descumpriu todos os prazos e regulamentos contidos na Lei Orgânica do Município e no regimento interno da Câmara Municipal, configurando-se num desrespeito para com as organizações da sociedade civil.

Apesar da pressão do Fórum através de denúncia nas rádios da cidade, carta aberta à população, ocupação da tribuna livre da Câmara Municipal para pressionar os vereadores a rejeitarem o veto da prefeita às propostas, mesmo assim a representante do Poder Executivo não voltou atrás e a Câmara referendou o veto, caracterizando-se, portanto, numa debilidade do processo democrático.

Os primeiros quatro anos da experiência foram suficientes para perceber o quanto a participação popular e cidadã no âmbito local encontra dificuldades, tendo em vista a tradição de nossa política, marcada pela ausência ou fragilidade da democracia, mesmo diante das mudanças institucionais decorrentes do processo de democratização do país.

Nos anos seguintes, com a mudança do governo municipal, o processo de diálogo foi mais flexível, possibilitando, assim, a abertura de canais com o poder executivo. Nesse contexto, ocorre um fortalecimento da legitimidade do Fórum enquanto ator político, conseguindo participar do processo de elaboração do orçamento, mesmo que a atual gestão local não tenha instituído o orçamento participativo, como reivindicavam os representantes do Fórum Cidade.

O processo de participação se ampliou, incorporando diversos movimentos e organizações populares, chegando a ter a participação de dezesseis entidades e movimentos sociais no Fórum. Foi escolhida uma coordenação para coordenar as ações e fazer a interlocução com os representantes do Poder Executivo e do Legislativo.

O Fórum passou a realizar regularmente plenárias populares com o objetivo de discutir e elaborar propostas a serem apresentadas nas mesas de negociação com o Poder Executivo, além do acompanhamento às sessões e audiências públicas realizadas durante o processo de elaboração do orçamento, como prevê a legislação, atividade que a Câmara não realizava durante o processo de elaboração das leis orçamentárias, só vindo a realizar após a ação política do Fórum Cidade.

Outra iniciativa desse processo de participação cidadã nas políticas públicas locais foi a realização de campanhas públicas para sensibilizar a população a despertar o interesse em participar do processo de elaboração do orçamento público do município. A primeira campanha teve como tema “A cidade é sua: ajude a torná-la melhor”. Campanhas semelhantes foram desenvolvidas em outros anos, com os mesmos objetivos. Durante o período do ano em que se elaborava o orçamento público no município, realizava-se um conjunto de atividades para mobilizar e sensibilizar a população a participar desse processo, dando visibilidade à ação desenvolvida pelo Fórum no município.

 

Figura 5. Cartaz da Campanha de participação popular realizada pelo Fórum em Parceria com o SEDUP

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Fonte: SEDUP.

 

Ao mesmo tempo em que se realizavam as atividades públicas, desenvolviam-se atividades formativas através de cursos e seminários para lideranças dos movimentos e organizações populares, para entender o que é uma peça orçamentária, como elaborar propostas de políticas públicas etc., tendo em vista a complexidade do orçamento público4. Como relata uma liderança, “antes, não se tinha acesso ao orçamento; hoje, a gente manuseia as notas fiscais. Quando a gente tem dúvida, vai à tesouraria, procura saber o número do empenho, quando tem [...]”.

Ao longo de quinze anos de experiência participativa, o Fórum passou por vários momentos e cenários políticos no âmbito local, mudanças de gestores e partidos na administração da cidade, sempre tendo como marca semelhante, em todas as gestões, o enfrentamento da impermeabilidade à participação cidadã e a fragilidade de canais de diálogo com a sociedade civil por parte dos agentes públicos. Dois desafios foram colocados para o Fórum nesse período: a dificuldade de ampliação, no sentido de envolver outros segmentos sociais para adquirir maior legitimidade; a articulação e diálogo com o Poder Judiciário, tendo em vista o desrespeito às regras e leis que fundamentam a participação dos cidadãos no ciclo orçamentário, previsto na Constituição Federal, Lei Orgânica Municipal, Lei de Responsabilidade Fiscal e Estatuto da Cidade, as quais apresentam prerrogativas que asseguram a gestão pública democrática.

Somado a esses dois desafios, destacamos ainda a dificuldade de execução das ações aprovadas nas Leis Orçamentárias: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). A sociedade civil consegue aprovar suas propostas nas referidas leis, mas quando chega o momento de execução por parte do poder executivo, as ações e projetos não são executados, desrespeitando as iniciativas da sociedade civil. Aspecto que tem se apresentado como um elemento desmobilizador para a continuidade da ação do Fórum. De acordo com a Constituição Federal, não existe a obrigatoriedade de se executar tudo o que foi definido no orçamento, aspecto que favorece a decisão do Poder Executivo de não realizar as propostas apresentadas pela sociedade civil e aprovadas no âmbito do Poder Legislativo, o que fragiliza a ação política da sociedade civil na incidência política no âmbito do orçamento público.

 

Considerações finais

A participação social no poder local se apresenta no cenário político com grandes desafios e dificuldades, tendo em vista a impermeabilidade dos políticos locais para a inclusão da sociedade civil na gestão da cidade. As iniciativas de participação na gestão pública, desenvolvidas ao longo do período de 2000 a 2017, foram resultado muito mais da incidência da sociedade civil do que de uma ação propositiva do Estado. O poder público local pouco contribuiu para a participação da sociedade nesse âmbito, não apresentando vontade política para a criação de canais de diálogo entre Estado e sociedade, ao contrário, busca fragilizá-los, o que ficou demonstrado nas várias manobras políticas por parte dos agentes públicos locais na relação com o Fórum, no processo de elaboração do orçamento público, sempre dificultando a ação dos representantes do Fórum nos momentos de definição e apresentação das demandas populares.

O movimento iniciado pela sociedade civil, com o envolvimento de atores sociais antes excluídos da cena política, representa uma possibilidade de ampliação da participação na direção da cidadania ativa e da democracia participativa, o que pôde ser observado pela participação de lideranças populares nos espaços de participação institucional local. A articulação das organizações sociais em fóruns populares, os quais passam a intervir em espaços restritos aos representantes da democracia representativa, representa um novo campo de ação e inovação política nos últimos anos, sendo o Fórum das Entidades e movimentos sociais um espaço significativo, com um papel importante na ampliação da participação social e na interlocução com os agentes públicos locais.

É importante destacar que as experiências de participação em curso que visam ao controle social da gestão pública se deparam com uma forte resistência por parte de uma cultura política não democrática presente no âmbito local, que impede o desenvolvimento de iniciativas da parte do Fórum das Entidades e Movimentos Sociais de Guarabira de forma mais efetiva. Os avanços ainda são frágeis, principalmente em relação à execução das propostas apresentadas pela sociedade civil nas leis orçamentárias. O poder executivo usando da prerrogativa da não obrigatoriedade de executar o orçamento, deixa de atender às ações aprovadas na lei orçamentária apresentadas pela sociedade civil, aspecto que tem fragilizado a ação do Fórum e desmobilizado os atores sociais para dar continuidade à ação cidadã.

Trata-se de um processo político participativo fundamental que requer outras estratégias no sentido de dar continuidade a uma ação política importante para o fortalecimento de uma esfera pública que possibilite o diálogo entre o Estado e os cidadãos, espaço fundamental para o desenvolvimento da cidadania ativa e de uma cultura política participativa.

 

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1 Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Brasil. Email: orlandil@hotmail.com

2 Organização não governamental localizada no município de Guarabira-PB, com atuação no campo da Educação Popular e que presta assessoria às organizações e movimentos sociais da região do Brejo paraibano.

3 O conteúdo da proposta consistia no seguinte: Políticas de assistência para o município, melhoria da estrutura e funcionamento dos Conselhos Gestores e Tutelar, que correspondiam ao valor de R$ 566.292,00, 2,32% do orçamento para 2004 que estava sendo proposto em R$ 23.986.900,00.

4 As atividades de campanhas públicas e capacitação tinham colaboração do SEDUP – Serviço de Educação Popular, que trabalha na região com a perspectiva metodológica da Educação Popular, colaborando nas ações dos movimentos sociais.